🔓 O problema das listas

A cronista debate sobre o conteúdo e a repercussão da lista feita por Luiz Ruffato com os “seus” “35 melhores romances brasileiros”
Detalhe da capa do romance Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso
08/06/2021

A ideia original era seguir com minha série LeituraBR, comentando os resultados da mais recente pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, em especial pinçando uns pontos curiosos que ela deixa, umas questões que ela provoca, mas aí a lista de melhores romances do Luiz Ruffato, meu vizinho aqui no Rascunho, ofuscou tudo e me fez interromper a programação normal. B.O.

Nada como um imprevisto para tirar a gente da série; e do sério. E quando é que uma lista não faz isso, né? Pelo menos desde a virada do milênio, as listas de romances “melhores” ou “destacados” ou “necessários” causam terremotos nas redes sociais, despertam a ira e a polêmica. É claro que Ruffato sabe disso. Para causar mais do que uma lista, só mesmo uma antologia. De preferência dessas “o melhor da…” ou “os X poetas…” etc., sempre extremamente parciais e discutíveis.

Qualquer editora sabe que esses títulos fazem diferença na receita. A depender de quem é escolhido(a) ou forjado(a) como antologista, é sucesso garantido. Vá lá… ao menos de buzz. Talvez esses volumes nem vendam horrores, mas criam burburinho e pautam debates. E foi tiro e queda, como diria minha avó.

Recebo a coluna do Ruffato toda sexta. Assim que li, fui lá postar o link do Rascunho nos grupos de que participo no Facebook, um dos quais o Mulherio das Letras ou o de Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. Nitroglicerina pura. A reação foi imediata. Postei apenas com uma pergunta retórica: “Coincide com seus 35?” É claro que não. Qual é a lista pessoal, composta a partir de critérios também pessoais, que coincide biunivocamente com a de outrem? O problema é que essas listas pessoais são atravessadas de outras questões, e isso é inescapável nos tempos que correm. Até escrevi ao vizinho dizendo que minha travessura — ou a dele — tinha gerado um debate acalorado. De repente, quem sabe, ele poderia declarar algo. Trocamos mais meia dúzia de e-mails sobre a culpa das ausências, omissões e silêncios, sem chegar a conclusões que resolvam alguma coisa.

Hipotética lista
A lista do Ruffato não coincide com a minha. Se eu fosse produzir minha lista dos 35 melhores romances brasileiros, ela certamente seria outra. O espaço é dele, a lista também. Ele diz lá que a explica, mas avisa que não vai justificá-la, embora sinalize alguns critérios: dos primórdios literários nacionais até 1990, romances que equilibrem bem fundo e forma.

De saída eu já teria uma questão: pela minha idade, li muito mais depois de 1990 do que antes, então talvez minha proporção de obras publicadas antes disso seja colada ao meu tempo e à minha preferência por autores vivos. E edição é história, tem a ver com nossa vida, tem escala humana. Nesse sentido, minha proporção de livros escolares (e o que entrava na lista da escola na época), midiáticos, pós-tecnologias digitais, etc., é outra. Também minha relação com reivindicações feministas no campo editorial e com a produção do meu tempo presente é bem particular. Por muitas razões, não espero mesmo que outra pessoa tenha uma lista como a minha.

Meu vizinho de coluna avisava: a lista é para provocar um “descontraído bate-papo”. Eu teria certeza da provocação, já do descontraído… Bom, fato é que do espalhamento da lista dele surgiram outras. Ótimas listas, por sinal, tão pessoais quanto a dele, às vezes cheias de motivações de outras naturezas também, só que explícitas. Salvei várias para meu uso. Um prato cheio para anotar o que precisa ser lido. Em especial, a resposta foi de base feminista. Listas como a da professora Eurídice Figueiredo, apenas com romances escritos por mulheres, ou a da poeta Adriane Garcia, no mesmo sentido, são minas de títulos interessantes, que talvez passem, num futuro não distante, a figurar mais normalmente em listas mais equilibradas. (Vale procurá-las Facebook adentro).

Discordâncias ferozes
As respostas mais ferozes que li tratavam, para muito além de discordâncias sobre este ou aquele título, da falta de mulheres entre os 35 autores de Ruffato. Foram apenas quatro as nomeadas, lembradas ou as consideradas entre os melhores (não faço ideia de quantas autoras ele leu na vida, então a proporção é difícil de medir). De fato, uma proporção devastadora, em especial quando lida em 2021. Uma cabeça ligada no debate facilmente começa a produzir uma lista-resposta cheia de autorias femininas merecedoras de nota ou de lugar entre os 35. É claro que o dono da primeira lista foi bem xingado redes afora.

Daí um probleminha: se estivermos limitadas a 35 títulos, alguém terá de sair para que uma mulher entre. Essa sensação de que competimos tem aumentado a labareda do parquinho. Para nosso alívio, a vida não precisa correr assim, em especial as vidas dos leitores e leitoras, e nossas listas de melhores podem ser bem maiores, infinitas até, inclusive considerando que elas sejam certamente fluidas, isto é, a cada novo ótimo romance lido, a lista inteira se mexe, reposicionando este e aquele, e deixando alguém mais embaixo, não necessariamente fora. (A poeta Adriane Garcia tem boas assertivas sobre nossas estantes receptivas e diversas). Ainda bem que não precisamos viver na lógica dos campeonatos de futebol e seus rebaixamentos; nem das listonas de revistas badaladas, que pululam todo fim de ano e fazem a alegria dos sortudos e sortudas citados(as).

Outro dia escrevi empolgadamente sobre um romance ótimo que li recentemente. É Suíte Tóquio, da Giovana Madalosso, também minha vizinha aqui. A leitura do livro dela bagunçou minha lista fixa, se minha lista acaso fosse fixa. Adorei, e sinto que esse romance se posicionou ali num lugar do meu histórico de leitora. O problema contrário também acontece. Para um exemplo retirado da lista do Ruffato, não li até hoje O amanuense Belmiro. A obra está ali na minha estante (posso enxergar a lombada daqui de onde escrevo), mas ainda não chegou sua vez. Será que ele mexerá com meu elenco de novo? Ou simplesmente discordarei do meu contemporâneo colega?

Se fosse referência
Da lista dele, li exatos 18 livros, dos quais 9 a pedido da escola pública onde estudei, no Segundo Grau (atual Ensino Médio). Andaram fazendo um bom trabalho, não? Mas o mérito também é meu, que realmente lia o que era indicado. Os outros 9 foram escolhas minhas, a maioria emprestados da biblioteca escolar. Sobram 17 livros da lista do Ruffato que eu não tive a chance de ler ainda, embora tenha lido outras obras dos mesmos escritores, caso, por exemplo, de Campos de Carvalho e Ignácio de Loyola Brandão.

Pondo foco nas escassas mulheres que ali aparecem, quase como premiadas, creio ter lido integralmente os livros de apenas duas, que não são minhas preferidas numa eventual lista limitada a 35. As duas que me faltam ler já estão anotadas há tempos, mas tenho preferido ler com mais afinco minhas contemporâneas, até por questões ligadas ao trabalho. Em pelo menos um caso concordo enfaticamente, e este vou explicitar: Guimarães Rosa. Para mim, ele é uma espécie de entidade difícil até de pôr em listas. Acho que no entra e sai das obras de minha hipotética lista limitada, Grande sertão: veredas teria lugar cativo e talvez sequer saísse lá das cabeças.

Fato é que parar nos anos 1990 não resolve a questão da falta de mulheres numa lista de melhores 35. Mas vi ali naquele elenco um poder enorme, por exemplo, da escola e dos livros didáticos para fazer com que isso se diversificasse mais, e com justiça. Não seria favor algum que outras ótimas prosadoras equilibrassem aquela proporção. Temos um problema de omissão historiográfica e educacional muito mais grave do que a lista do Ruffato.

Minha não lista
Se eu fosse instada a fazer uma lista de melhores romances que li (eu li, pessoalmente) e precisasse parar nos anos 1990 (lançados até aí), muito provavelmente teria um conjunto menos masculino. Se a lista pudesse avançar sobre a virada do milênio, então eu já não teria dúvidas disso, porque as autoras dominaram minhas estantes de maneira avassaladora, mas aí também por um interesse deliberado meu. Sou mais leitora de poesia do que de romance, o que também mexe com meus mapas literários, inclusive facilitando a entrada feminina. Sabemos que o romance é uma senda ainda mais difícil do que outras, no campo da edição, dadas as economias diferentes de criação, produção, prestígio, redes intelectuais, etc.

Bom, minha lista não é pública. E nem faz diferença alguma que não seja. Quem sou eu na fila do pão? Isso é outro ponto interessante nesta arena literária, mas também política e social: quem produz uma lista faz uma diferença danada. É um bom jeito de verificar como anda aí a corda das pessoas. Uma lista publicada pelo Luiz Ruffato faz tremer. A contralista da profa. Eurídice fez tremer uma espécie de bolha ligada a esse tema, mas não sei se cutucou geral, como seria bom que acontecesse, do ponto de vista de um efeito mais amplo.

O que sei é que o Rascunho foi acionado diretamente por escritoras e ficou devendo uma lista mais justa (embora a coluna do Ruffato não seja exatamente pautada pelo jornal). E agora, José? Ops, Luiz. Quem vai dar pressão? Quem se habilita, entre as autoras? E que lista seria esta, menos ou mais “espontânea”? Vamos de vingança ou de exame minucioso? É claro que há uma assimetria também em relação à circulação dessas listas. Publicar no Rascunho e responder na rede social não são equivalentes. Tomara que consigamos produzir uma simetria interessante para este debate, que vai muito além do bate-papo descontraído. Faz tempo que essas listas, enunciadas por certas personas, deixaram de ser uma simples troca de figurinhas. Haja farpa.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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