A ideia original era seguir com minha série LeituraBR, comentando os resultados da mais recente pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, em especial pinçando uns pontos curiosos que ela deixa, umas questões que ela provoca, mas aà a lista de melhores romances do Luiz Ruffato, meu vizinho aqui no Rascunho, ofuscou tudo e me fez interromper a programação normal. B.O.
Nada como um imprevisto para tirar a gente da sĂ©rie; e do sĂ©rio. E quando Ă© que uma lista nĂŁo faz isso, nĂ©? Pelo menos desde a virada do milĂŞnio, as listas de romances “melhores” ou “destacados” ou “necessários” causam terremotos nas redes sociais, despertam a ira e a polĂŞmica. É claro que Ruffato sabe disso. Para causar mais do que uma lista, sĂł mesmo uma antologia. De preferĂŞncia dessas “o melhor da…” ou “os X poetas…” etc., sempre extremamente parciais e discutĂveis.
Qualquer editora sabe que esses tĂtulos fazem diferença na receita. A depender de quem Ă© escolhido(a) ou forjado(a) como antologista, Ă© sucesso garantido. Vá lá… ao menos de buzz. Talvez esses volumes nem vendam horrores, mas criam burburinho e pautam debates. E foi tiro e queda, como diria minha avĂł.
Recebo a coluna do Ruffato toda sexta. Assim que li, fui lá postar o link do Rascunho nos grupos de que participo no Facebook, um dos quais o Mulherio das Letras ou o de Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. Nitroglicerina pura. A reação foi imediata. Postei apenas com uma pergunta retórica: “Coincide com seus 35?” É claro que não. Qual é a lista pessoal, composta a partir de critérios também pessoais, que coincide biunivocamente com a de outrem? O problema é que essas listas pessoais são atravessadas de outras questões, e isso é inescapável nos tempos que correm. Até escrevi ao vizinho dizendo que minha travessura — ou a dele — tinha gerado um debate acalorado. De repente, quem sabe, ele poderia declarar algo. Trocamos mais meia dúzia de e-mails sobre a culpa das ausências, omissões e silêncios, sem chegar a conclusões que resolvam alguma coisa.
Hipotética lista
A lista do Ruffato não coincide com a minha. Se eu fosse produzir minha lista dos 35 melhores romances brasileiros, ela certamente seria outra. O espaço é dele, a lista também. Ele diz lá que a explica, mas avisa que não vai justificá-la, embora sinalize alguns critérios: dos primórdios literários nacionais até 1990, romances que equilibrem bem fundo e forma.
De saĂda eu já teria uma questĂŁo: pela minha idade, li muito mais depois de 1990 do que antes, entĂŁo talvez minha proporção de obras publicadas antes disso seja colada ao meu tempo e Ă minha preferĂŞncia por autores vivos. E edição Ă© histĂłria, tem a ver com nossa vida, tem escala humana. Nesse sentido, minha proporção de livros escolares (e o que entrava na lista da escola na Ă©poca), midiáticos, pĂłs-tecnologias digitais, etc., Ă© outra. TambĂ©m minha relação com reivindicações feministas no campo editorial e com a produção do meu tempo presente Ă© bem particular. Por muitas razões, nĂŁo espero mesmo que outra pessoa tenha uma lista como a minha.
Meu vizinho de coluna avisava: a lista Ă© para provocar um “descontraĂdo bate-papo”. Eu teria certeza da provocação, já do descontraĂdo… Bom, fato Ă© que do espalhamento da lista dele surgiram outras. Ă“timas listas, por sinal, tĂŁo pessoais quanto a dele, Ă s vezes cheias de motivações de outras naturezas tambĂ©m, sĂł que explĂcitas. Salvei várias para meu uso. Um prato cheio para anotar o que precisa ser lido. Em especial, a resposta foi de base feminista. Listas como a da professora EurĂdice Figueiredo, apenas com romances escritos por mulheres, ou a da poeta Adriane Garcia, no mesmo sentido, sĂŁo minas de tĂtulos interessantes, que talvez passem, num futuro nĂŁo distante, a figurar mais normalmente em listas mais equilibradas. (Vale procurá-las Facebook adentro).
Discordâncias ferozes
As respostas mais ferozes que li tratavam, para muito alĂ©m de discordâncias sobre este ou aquele tĂtulo, da falta de mulheres entre os 35 autores de Ruffato. Foram apenas quatro as nomeadas, lembradas ou as consideradas entre os melhores (nĂŁo faço ideia de quantas autoras ele leu na vida, entĂŁo a proporção Ă© difĂcil de medir). De fato, uma proporção devastadora, em especial quando lida em 2021. Uma cabeça ligada no debate facilmente começa a produzir uma lista-resposta cheia de autorias femininas merecedoras de nota ou de lugar entre os 35. É claro que o dono da primeira lista foi bem xingado redes afora.
DaĂ um probleminha: se estivermos limitadas a 35 tĂtulos, alguĂ©m terá de sair para que uma mulher entre. Essa sensação de que competimos tem aumentado a labareda do parquinho. Para nosso alĂvio, a vida nĂŁo precisa correr assim, em especial as vidas dos leitores e leitoras, e nossas listas de melhores podem ser bem maiores, infinitas atĂ©, inclusive considerando que elas sejam certamente fluidas, isto Ă©, a cada novo Ăłtimo romance lido, a lista inteira se mexe, reposicionando este e aquele, e deixando alguĂ©m mais embaixo, nĂŁo necessariamente fora. (A poeta Adriane Garcia tem boas assertivas sobre nossas estantes receptivas e diversas). Ainda bem que nĂŁo precisamos viver na lĂłgica dos campeonatos de futebol e seus rebaixamentos; nem das listonas de revistas badaladas, que pululam todo fim de ano e fazem a alegria dos sortudos e sortudas citados(as).
Outro dia escrevi empolgadamente sobre um romance Ăłtimo que li recentemente. É SuĂte TĂłquio, da Giovana Madalosso, tambĂ©m minha vizinha aqui. A leitura do livro dela bagunçou minha lista fixa, se minha lista acaso fosse fixa. Adorei, e sinto que esse romance se posicionou ali num lugar do meu histĂłrico de leitora. O problema contrário tambĂ©m acontece. Para um exemplo retirado da lista do Ruffato, nĂŁo li atĂ© hoje O amanuense Belmiro. A obra está ali na minha estante (posso enxergar a lombada daqui de onde escrevo), mas ainda nĂŁo chegou sua vez. Será que ele mexerá com meu elenco de novo? Ou simplesmente discordarei do meu contemporâneo colega?
Se fosse referĂŞncia
Da lista dele, li exatos 18 livros, dos quais 9 a pedido da escola pública onde estudei, no Segundo Grau (atual Ensino Médio). Andaram fazendo um bom trabalho, não? Mas o mérito também é meu, que realmente lia o que era indicado. Os outros 9 foram escolhas minhas, a maioria emprestados da biblioteca escolar. Sobram 17 livros da lista do Ruffato que eu não tive a chance de ler ainda, embora tenha lido outras obras dos mesmos escritores, caso, por exemplo, de Campos de Carvalho e Ignácio de Loyola Brandão.
Pondo foco nas escassas mulheres que ali aparecem, quase como premiadas, creio ter lido integralmente os livros de apenas duas, que nĂŁo sĂŁo minhas preferidas numa eventual lista limitada a 35. As duas que me faltam ler já estĂŁo anotadas há tempos, mas tenho preferido ler com mais afinco minhas contemporâneas, atĂ© por questões ligadas ao trabalho. Em pelo menos um caso concordo enfaticamente, e este vou explicitar: GuimarĂŁes Rosa. Para mim, ele Ă© uma espĂ©cie de entidade difĂcil atĂ© de pĂ´r em listas. Acho que no entra e sai das obras de minha hipotĂ©tica lista limitada, Grande sertĂŁo: veredas teria lugar cativo e talvez sequer saĂsse lá das cabeças.
Fato é que parar nos anos 1990 não resolve a questão da falta de mulheres numa lista de melhores 35. Mas vi ali naquele elenco um poder enorme, por exemplo, da escola e dos livros didáticos para fazer com que isso se diversificasse mais, e com justiça. Não seria favor algum que outras ótimas prosadoras equilibrassem aquela proporção. Temos um problema de omissão historiográfica e educacional muito mais grave do que a lista do Ruffato.
Minha nĂŁo lista
Se eu fosse instada a fazer uma lista de melhores romances que li (eu li, pessoalmente) e precisasse parar nos anos 1990 (lançados atĂ© aĂ), muito provavelmente teria um conjunto menos masculino. Se a lista pudesse avançar sobre a virada do milĂŞnio, entĂŁo eu já nĂŁo teria dĂşvidas disso, porque as autoras dominaram minhas estantes de maneira avassaladora, mas aĂ tambĂ©m por um interesse deliberado meu. Sou mais leitora de poesia do que de romance, o que tambĂ©m mexe com meus mapas literários, inclusive facilitando a entrada feminina. Sabemos que o romance Ă© uma senda ainda mais difĂcil do que outras, no campo da edição, dadas as economias diferentes de criação, produção, prestĂgio, redes intelectuais, etc.
Bom, minha lista nĂŁo Ă© pĂşblica. E nem faz diferença alguma que nĂŁo seja. Quem sou eu na fila do pĂŁo? Isso Ă© outro ponto interessante nesta arena literária, mas tambĂ©m polĂtica e social: quem produz uma lista faz uma diferença danada. É um bom jeito de verificar como anda aĂ a corda das pessoas. Uma lista publicada pelo Luiz Ruffato faz tremer. A contralista da profa. EurĂdice fez tremer uma espĂ©cie de bolha ligada a esse tema, mas nĂŁo sei se cutucou geral, como seria bom que acontecesse, do ponto de vista de um efeito mais amplo.
O que sei Ă© que o Rascunho foi acionado diretamente por escritoras e ficou devendo uma lista mais justa (embora a coluna do Ruffato nĂŁo seja exatamente pautada pelo jornal). E agora, JosĂ©? Ops, Luiz. Quem vai dar pressĂŁo? Quem se habilita, entre as autoras? E que lista seria esta, menos ou mais “espontânea”? Vamos de vingança ou de exame minucioso? É claro que há uma assimetria tambĂ©m em relação Ă circulação dessas listas. Publicar no Rascunho e responder na rede social nĂŁo sĂŁo equivalentes. Tomara que consigamos produzir uma simetria interessante para este debate, que vai muito alĂ©m do bate-papo descontraĂdo. Faz tempo que essas listas, enunciadas por certas personas, deixaram de ser uma simples troca de figurinhas. Haja farpa.