Anteontem era um grupo de homens esburacando a avenida, de madrugada. Hoje é um só golpeando a calçada da esquina com uma picareta, fazendo subir o som de uma tarefa demente. Não, isso não é um trabalho noturno, não venham dizer que é para não perturbar o trânsito do dia, se o dia é feito para essas maçadas no caminho. Pois que seja o dia a engolir mais esse caos sobre caos, esse caos dentro de caos, e nos deixem livres as madrugadas, pelo amor dos nossos nervos, ao menos as madrugadas, para alguma paz sobrevivente, de sangue sem sobressalto, alguma bendita coincidência de silêncio fora e dentro.
Mas não. Agora querem nos tomar também esse espaço, essa chance de respiro, querem meter picaretas e britadeiras na pouca paz das nossas crônicas, e ainda mais, nos nossos sonhos, com esses monstruosos gorgolejos de buracos se abrindo. Será um plano diabólico da cidade para o nosso enervamento? Minha filha me disse outro dia: “mamãe, a cidade está brava com você”. Brava comigo, a cidade? Porque eu não gosto dos seus barulhos. Porque sim, eu me revolto, tenho vontade de gritar para que parem, que nos deixem em paz, que deixem a noite em paz, que vão todos para o olho do dia.
Porque não há razão que explique esse gorgolejar infernal de máquina enchendo o ar da avenida na madrugada. E que não cessa, noite após noite, de uma madrugada a outra. Um homem com uma picareta ou três ou quatro em torno de uma máquina pavorosa dessas, de escavar, perfurar, tremer a terra, e o ar da noite está cheio de catástrofe. É mais um prazer diabólico de estorvar, só pode ser. Um plano diabólico da cidade, para ver se aguentamos, e até onde aguentamos, entre ruas esburacadas e os barulhos de esburacar, onde mais nos refugiaremos, agora que nem as noites nos protegem. Onde?