🔓 O caminho de volta para o mar

Em meio aos problemas e atropelos da vida, a cronista revisita um lugar capaz de lhe mostrar que é preciso muito pouco para ser feliz
Ilustração: Oliver Quinto
06/03/2022

O mar é a referência mais forte da minha infância — o sol entrando pelas frestas no pequeno apartamento da Rua Pacheco Leão era sinal de que o fim de semana daria praia, e nada me deixava mais feliz do que acordar cedo e ir na direção do mar. O cheiro do sal quando o fusca amarelo margeava a orla era a certeza de que meu dia seria alongado por aquela sensação maravilhosa até a próxima semana.

Ocorre que, no meio do caminho da vida, perdi a direção do mar. Minha infância foi cortada ao meio. Eu me mudei. Fui para o Sul e depois para Minas. Perdi o elo com aquele sentimento tão profundo que é desejar estar na praia, sentar-me na areia e não fazer nada; apenas olhar o mar, a vastidão, o vaivém das ondas. Demorei décadas dentro deste sentimento de que a praia não me fazia falta, de que outras águas igualmente abençoariam meus dias. Só que não.

Outro dia, no meio de um problema muito grave, que vem assombrando meus dias e noites, não encontrei outro refúgio a não ser buscar o mar. Fui à praia em um meio de tarde, sozinha. A praia estava ali para me esperar, como sempre.

Foi então que compreendi que havia me afastado de uma referência tão minha. Por que fiz isso? A vida se mostrou com tantos problemas e atropelos ao longo das décadas que me esqueci de refazer o caminho do mar — perdi o rumo, não sabia que me faria tão bem retornar. Não que tenha sido uma volta à infância, mas um retorno a uma origem.

Me lembro uma vez de receber um cartão de uma tia que morava no Rio e que ia todos os dias à praia. Naquela época eu morava em Juiz de Fora. Não me lembro exatamente todo o conteúdo do texto, mas é vívida ainda a forma como ela terminou: “A gente precisa de muito pouco para ser feliz”.

Acho que nesse momento em que muitos de nós lidam com as sequelas de uma pandemia que custa a acabar, talvez retomar o caminho do mar seria justamente isto: entender novamente que minha infância foi simples e feliz — sem apetrechos tecnológicos, sem nada de marca ou rede social. O caminho do sol, que traçava a luz no tapete cinza da sala, era a direção de uma vida cheia de horizontes. Porque o mar é, acima de tudo, horizonte. Sentar-se na praia e olhar aquela imensidão traz para a gente a certeza do grandioso, a força das marés que, em conjunção com o sol, abençoa nossos passos neste mundo tão perigoso.

Foi assim que, no meio de uma tarde tão afobada de problemas, redescobri o caminho do mar e sua potência curativa. Não quero e não vou nunca mais me perder.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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