(11/11/20)
Para Eson Pavoni e Gabriela Veiga
Aos quarenta e cinco anos, achei que já tinha escrito tudo que é coisa. Me formei em jornalismo, escrevi matérias e crônicas. Depois comecei a trabalhar como redatora publicitária e assinei comerciais e slogans. Num certo momento, tomei coragem e larguei tudo para tornar-me dramaturga. Escrevi uma peça e algumas séries de tevê. Como escritora, publiquei contos, ensaios, romances, poemas. Prefácios, resenhas e orelhas. A pedido de amigos, convites irreverentes de casamento, discursos de formatura. Opiniários para o restaurante da minha família. Talvez me faltasse a experiência de escrever uma bula de remédio, mas ao menos em termos de escrita criativa eu pensava que já podia amarrar meu lápis na sombra, tinha experiência no que fosse.
Em março de 2020, um novo desafio. Recebi um telefonema de um amigo, artista plástico, me convidando para participar de um projeto ambicioso. A Covid estava começando a matar brasileiros e ele não queria que essas mortes se tornassem apenas números. Tinha o plano de escrever um obituário e um epitáfio para cada vítima, reunindo tudo num site e, no futuro, em uma obra física. Eu disse que ele estava doido, não dava para fazer uma coisa dessas. Talvez fosse possível na Nova Zelândia, onde as mortes por Covid não bateriam uma centena, mas no Brasil, o país da gripezinha? Como escreveríamos cem mil obituários? (Na época ainda estávamos otimistas com relação aos números.) Sugeri que fizéssemos um formulário online. Cada família escreveria o obituário e o epitáfio do seu falecido e, em seguida, subiria tudo no site. Lembro que ele ficou em silêncio, pensando a respeito. Depois disse que não, a ideia não era essa. A proposta do Inumeráveis era colaborar com o luto. Ouvir cada pessoa que perdeu alguém, amparar através da escuta e, a partir daí, produzir um obituário digno, feito por quem sabe escrever.
Imaginei o exército de jornalistas e escritores. O pavilhão lotado, as mesas em fila, a orquestra de telefones tocando, os milhares de dedos frenéticos nos teclados, os coturnos dos redatores-chefes ameaçando quem ousasse titubear em alguma frase. Vamos, seus inúteis, temos todo um Brasil a obituar! Claro que meu amigo estava delirando, aquilo não ia dar certo, mas como detesto ser podadora de sonhos, disse que podia contar comigo. Eu ajudaria a colocar o projeto de pé.
Na semana seguinte, meu amigo e sua pequena equipe começaram a arregimentar pesquisadores que ouvissem as famílias e checassem os dados, jornalistas e escritores que escrevessem os obituários e revisores que finalizassem os textos. Sabendo que trabalharíamos com todo tipo de voluntário, desde estudantes do primeiro ano de jornalismo a escritores experientes (eu já tinha conseguido trazer Martha Batalha e Rafael Gallo para o projeto), concluí que precisaríamos de uma certa unidade para os epitáfios e obituários, tanto em termos de tamanho quanto de qualidade – as histórias precisavam estar bem escritas para emocionar.
Resolvi fazer uma coisa que, segundo o Google, ninguém havia feito em língua portuguesa: um Manual de Redação de Obituários. Fui ler os famosos obituários do New York Times. De fato muito bem escritos, mas para nós não eram a melhor referência. A cidade reúne uma quantidade ímpar de artistas com suas sagas interessantes e, muitas vezes, gloriosas. Era óbvio o que precisava ser dito sobre o compositor que escreveu a popular Mr. Bojangles, sobre a poeta beat que foi uma vozes mais fortes da sua geração, sobre uma certa Mrs. Chiang que trouxe a autêntica comida chinesa para a América. Mas eu precisava escrever um texto sobre o seu Hermes, que trabalhou a vida toda na construção civil, teve três filhos e gostava de tomar cerveja nos finais de semana. Só isso? Insisti com a viúva. Só, ela respondeu. E os amigos, o que diziam dele? Que era um bom homem. E pra você? Era um bom marido. Já ia quase desligando, quase desistindo de procurar graça no seu Hermes, quando resolvi perguntar: e tinha alguma coisa que ele costumava dizer? Senti que ela abriu um sorriso. Bastava ele conhecer uma pessoa pra ir logo falando: sou lá da Catingueira da Paraíba, conhece? Aí estava o epitáfio dessa vítima do coronavírus e a origem de uma das regras do manual: conversar até achar algo singular de cada um. E, depois de ter escrito quase uma centena de obituários, posso dizer: não há quem não tenha alguma característica tão única quanto a sua digital.
O Manual de Redação de Obituários ainda explicava como contar bem uma história, sugerindo, entre outras coisas, que o obituário não precisa seguir uma ordem cronológica, que é melhor um episódio bem narrado do que diversos sem aprofundamento, que mais vale descrever uma característica da pessoa através de uma ação do que de uma pilha de adjetivos. E que, por favor, pelo amor de Deus, da Nossa Senhora ou de qualquer divindade de preferência, o redator não deveria jamais usar clichês como: tinha um grande coração.
Contrariando minhas expectativas, o Inumeráveis logo tinha um exército de voluntários. E aqui paro de usar a palavra exército, porque não há termo mais distante das células então formadas. Os grupos de pesquisadores, redatores e revisores cresciam de forma autônoma e descentralizada. Voluntários de todos cantos do país, com todos os tipos de formação, chegando em dezenas por dia, ansiosos para pôr sua energia a favor da vida e da memória – em oposição ao projeto necrófilo do governo. Tive que dar meu braço cansado da escrita a torcer: o projeto era para lá de viável.
Depois de três meses, os voluntários eram tantos que, às vezes, não dávamos conta de cadastrá-los. Era preciso voluntários para receber os voluntários. As histórias escritas pelos Inumeráveis viraram capa de jornal, passaram a ser projetadas nos muros nas capitais, declamadas por atores no Fantástico. Quando entrevistado pelos jornalistas sobre a quantidade de pessoas que formavam o Inumeráveis, meu amigo dizia que eram inumeráveis. Não só por uma questão ideológica, mas porque ele mesmo já tinha perdido a conta. E claro que, no volume e na velocidade que os textos estavam sendo produzidos, nem sempre saíam perfeitos.
Surtei algumas vezes. Acordei a chefe dos revisores à meia-noite quando vi um post com sujeito e predicado separados por vírgula. Gritei: precisamos levantar o sarrafo!, quando assisti a uma história mal contada no Fantástico. E os clichês, como sofri com os clichês. Todos os possíveis para os olhos, para o coração – órgãos campeões no ensejo de metáforas. Pensei em colocar um splash em certas regras do manual de redação. Pensei em convocar uma reunião com todos os Inumeráveis. Até que percebi que estava enxergando o mundo pandêmico pelo ângulo do meu compartimento. Talvez alguém tenha escrito que Rosa tinha o maior coração do mundo porque era isso que todos os parentes falavam dela. Drummond poderia escrever o epitáfio mais inusitado para falar da bondade de Rosa que não ficaria tão bom quanto o lugar-comum cardíaco. Ou talvez o redator não tenha lido o manual. Ou talvez tenha lido e ignorado, movido apenas pelo que sentia.
Custaram-me meses para entender o que meu amigo já havia me explicado no primeiro dia. Ainda que sustentado por narrativas, o Inumeráveis nunca foi sobre contar histórias, mas sobre a intersecção do sujeito que morre, do sujeito que fica e do sujeito que acolhe, e sobre o que nasce desse encontro. Algo tão bonito e significativo que faz uma vírgula fora do lugar ser apenas o que é: um cisco irrelevante.