🔓 O aborrecimento dos livros

Deveria ser ensinado que a literatura cumpre um papel importantíssimo na nutrição e equilíbrio intelectual de uma pessoa
Ilustração: Thiago Lucas
01/02/2023

É certo, sabido e assegurado por dados estatísticos que em Portugal se lê pouco, uma ninharia. O último estudo de 2022 garantia que mais de 61% dos portugueses não leram um único livro no ano anterior. Os motivos são vários; além do valor dos livros, que é alto e afasta muitas pessoas das livrarias, os portugueses e as portuguesas parecem sentir uma espécie de culpa ligada à leitura. “Sentem para com os livros uma sensação de obrigação. É uma chatice. Deveriam ler, mas têm um sentimento de culpa, não sei se é católico, é um sentido de culpabilidade: ’Tenho de ler, eu sei que tenho que ler!’”, diz o escritor e cronista português Miguel Esteves Cardoso, e eu subscrevo.

Ou seja, os portugueses e as portuguesas têm noção dos benefícios da leitura, mas veem-na como uma obrigação. Podemos comparar esta culpa literária com a da alimentação, por exemplo, quando trocamos os legumes por comida gordurosa ou açucarada e temos noção de que aquilo nos prejudica. É muitas vezes esse sentido de responsabilidade que nos retira qualquer espécie de prazer quando empurramos uns quantos legumes pela goela abaixo. Algo que podia saber bem transforma-se, de facto, numa obrigação. Ademais, uma pessoa não devia querer nutrir apenas a barriga, mesmo que coma muitos legumes. Uma alimentação e desenvolvimento sadios para qualquer cidadão ou cidadã deveriam inclui a leitura, o consumo de livros, porque é óbvio que nos faz bem enquanto seres humanos. E não teríamos qualquer espécie de sentimento de culpa se fossemos educados desde cedo para a leitura.

Aprendemos cedo que uma nutrição variada nos torna pessoas mais equilibradas, logo devia ser-nos ensinado também que os livros, e só os livros, cumprem um papel importantíssimo na nutrição e equilíbrio intelectual de uma pessoa. Além disso, ler é das coisas mais prazerosas que podemos fazer, devia ser-nos vendido desta forma.

Muitas pessoas dizem que os livros são caros (e em Portugal não é mentira, são mesmo dispendiosos, comparados com o nível médio do rendimento de uma pessoa) mas comprar um livro é um investimento para a vida. Um livro dura uma vida inteira, é uma viagem à cabeça de outra pessoa, a outro lugar e a outro tempo, que podemos repetir várias vezes e proporcioná-la a outros. Além disso, é um objeto tão bonito, portátil. Em Portugal, e estou certa de que em muitos países, ensina-se a ler com um sentido militar de obrigatoriedade e isso prejudica muito o primeiro encontro com os livros. Quando és criança não gostas que te obriguem a nada, sejam livros ou legumes ou que comas a sopa. Apresentar os livros aos miúdos como um prato de sopa afasta-os imediatamente: “Tens de comer, faz-te bem à saúde”. Claro que não querem.

Além disso, normalmente são os mesmos adultos que obrigam os miúdos a comer a sopa e que nem sequer tocam no prato fundo, são adultos que não comem sopa. Passa-se exatamente o mesmo com os livros. Mães, pais e professores obrigam os miúdos e as miúdas a ler, mas nunca são vistos com um livro na mão, nem apanhados em flagrante no gozo de um livro. Não falam sobre os livros que leram ou, se o fazem, tornam muitas vezes o conteúdo um enfado. Se as crianças raramente veem os pais ou os professores a ler como podem ter um modelo para copiar? Dirão que também não veem normalmente o pai ou mãe a jogar à bola e que não é por isso que fazem frete para ir jogar com os amigos para a rua.

A verdade é que não precisam de ver os adultos próximos a jogar; desde cedo as crianças percebem o grande entusiasmo dos adultos, sobretudo os pais, por esta prática desportiva. É inevitável, crescem rodeados de imagens e símbolos do futebol. É natural que queiram jogar, são empurrados inconscientemente para isso. Devíamos fazer o mesmo em relação à leitura. Oferecer livros aos miúdos e às miúdas na mesma quantidade com que se oferecem bolas. Mostrar-lhes que os livros são bilhetes de avião, que com eles podem viajar a qualquer momento, que não têm nada de aborrecido, mesmo que na escola lhes obriguem os versos do poema Liberdade, de Fernando Pessoa.

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira sem literatura. (…)

Que continuem a ler-se os versos do poeta, mas não sem deixar de esclarecer que o “poeta é um fingidor” e que o sol pode doirar sem literatura, mas não é a mesma coisa.

Cláudia Lucas Chéu

Nasceu em Lisboa (Portugal), em 1978. É escritora, poeta, dramaturga e argumentista. Tem mais de uma dezena de livros publicados em Portugal (poesia, dramaturgia, romance e contos). No Brasil, publicou os livros de poesia Confissão (Reformatório) e Ratazanas (Demônio Negro). Escreve para diversas publicações (jornal Público, Mensagem de Lisboa, revista Máxima, entre outras). Confissão foi semifinalista do Prêmio Oceanos em 2021.

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