🔓 Não faça da orelha um corpo

Orelhas literárias podem ser tão variadas quanto as nossas, tanto em termos de tamanho e forma, quanto de acessórios, com brincos linguísticos de todas as espécies
24/11/2020

(25/11/20)

A anatomia é clara: corpo é corpo, orelha é orelha. Assim como são claras as suas funções. Ninguém tenta ouvir usando um cotovelo. Ninguém tenta respirar usando o lóbulo esquerdo. Se tudo é tão claro na carne, por que não no material impresso?

Depois que me tornei escritora, passei a observar orelhas. A ser convidada para escrever orelhas. Na primeira vez, não sabia como fazer. Nunca estudei para conceber paratextos. E mesmo que tivesse me interessado em estudar: nunca ouvi falar de Oficina de Orelhas ou Manual de Redação de Orelhas. Até porque pressupõe-se que alguém convidado para assinar tal texto seja experiente a ponto de não precisar de qualquer orientação.

Mas a primeira vez é a primeira vez e, antes de escrever qualquer palavra, corri para a minha biblioteca. Passei uma tarde lendo orelhas, os livros todos espalhados ao meu redor, numa otorrino-orgia que nunca mais vou esquecer. E o que observei? Que orelhas literárias podem ser tão variadas quanto as nossas, tanto em termos de tamanho e forma, quanto de acessórios, com brincos linguísticos de todas as espécies.

Em termos de conteúdo, a maioria dos orelhistas é experiente e costuma entregar o que deve: uma ideia geral sobre o livro (sem contar demais para não tirar a graça), sua impressão a respeito, algo sobre o autor e às vezes até sobre a relação entre os dois.

Dentro desse escopo, aparecem variações, na maioria das vezes muito boas, já que a aba da publicação é um espaço livre, onde o convidado pode e deve brilhar. O problema é quando o convidado quer brilhar demais. Mais do que o próprio autor. Cheguei a encontrar um livro de poemas cuja apresentação era também um poema. O orelhista falou em verso sobre a obra do outro, e pra piorar: num estilo poético diferente. Ao fim, não entendemos nada sobre o conteúdo que vem a seguir. A única coisa que fica clara é a triste carência do coadjuvante, puxando o público do outro para si.

Nem todo caso é tão extremo, mas há diversos em que o excesso de metáforas e salamaleques linguísticos funcionam como pedrarias: distraem e ofuscam o resto. Nessa situação, recomendo uma edição à la Van Gogh. Dói cortar? Dói, mas o corpo sobrevive.

Giovana Madalosso

Nasceu em Curitiba (PR), em 1975. É autora de A teta racional (livro de contos finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional), e dos romances Tudo pode ser roubado (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura) e Suíte Tóquio.

Rascunho