Minha biblioteca recĂ©m-ressuscitada para as estantes hoje Ă© uma vileta de mais ou menos seis mil habitantes. Modesta aos olhos de alguns, abastada aos olhos de outros, que importa realmente? O que me importa Ă© esse cosmo expandido livro por livro, em milhares de Ănfimas investigações e grandes enamoramentos.
Senhor de um respeitável povoado de trinta e cinco mil, Alberto Manguel revĂŞ todas as bibliotecas que teve na vida como parte dele mesmo, “uma espĂ©cie de autobiografia em camadas”. Lugar das nossas disposições criativas, do nosso modo Ăşnico de ordenar essa multidĂŁo caĂłtica de amigos, encolhendo a centĂmetros de distância os que já estiveram separados por trĂŞs sĂ©culos ou os que jamais se souberam, e porque jamais se souberam, jamais se imaginaram vizinhos. Lugar de rememoramento. E quanto maior a idade de uma biblioteca, que afinal se constitui com o tempo, mais demorada e vasta quer ser essa ocupação da relembrança.
Carregamos nossos livros de casa em casa como se eles nos guardassem tanto quanto os guardamos. E essa é uma das estações dos velhos leitores: ir aos livros não mais como quem desbrava, senão como quem revisita o que já amou, por ter amado. Ir aos livros não exatamente como quem estuda, senão como quem constata. Reler depois que a vida clareia a coisa lida, o que é da ordem de contemplar cachimbando.
E que prazer, depois de muitos diferentes agrupamentos desses livros, que foram se somando ao longo dos anos e das casas, poder recombiná-los com mais loucura do que antes, fazer se beijarem mais amiúde os de continentes remotos, os de vasto céu e os de chão aderente, todos os lúbricos da palavra, poetas do mundo todo e seus cantos condensados numa sala, e o prazer de fazer coexistirem numa mesma estante os de trasanteontem e os de agora, sem a menor necessidade de distinções ou justificativas, sendo já a biblioteca ela mesma o reino dos nossos eleitos.
Desse microcosmo, que guarda viagens no tempo, recupero o livro que abri pela primeira vez há vinte e cinco anos. Uma antologia de Emily Dickinson que era de minha mĂŁe e lá longe eu lhe tomei (agora ela saberá!). Um livro que está entre os que fundaram essa vileta, num primeiro abrigo de casulo e anel de luz. Uma centena de poemas. Todos aqueles enigmas exsudando do microcosmo de um jardim, dando na ousadia de substantivos capitais. Abelhas, mariposas, um rato, o despontar da noite no gramado, lĂrios-do-vale, um outeiro vermelho-sangue, um vulcĂŁo, um vĂłrtice de rosas.
Nossas bibliotecas sĂŁo tambĂ©m como esses jardins mĂnimos, de verde quase antigo, pois nĂŁo sĂŁo? Onde passamos, em silĂŞncio marulhado de zumbidos, manhĂŁs ou tardes ou noites sem conta. E agora, agora mesmo, bendito sábado!, quantos de nĂłs nĂŁo estĂŁo a um gesto dessa hora interminável?