🔓 Mínimo jardim

No bendito sábado, a cronista reflete sobre bibliotecas pessoais e os microcosmos que elas criam, tornando vizinhos autores separados por séculos
Ilustração: Eduardo Mussi
12/02/2022

Minha biblioteca recém-ressuscitada para as estantes hoje é uma vileta de mais ou menos seis mil habitantes. Modesta aos olhos de alguns, abastada aos olhos de outros, que importa realmente? O que me importa é esse cosmo expandido livro por livro, em milhares de ínfimas investigações e grandes enamoramentos.

Senhor de um respeitável povoado de trinta e cinco mil, Alberto Manguel revê todas as bibliotecas que teve na vida como parte dele mesmo, “uma espécie de autobiografia em camadas”. Lugar das nossas disposições criativas, do nosso modo único de ordenar essa multidão caótica de amigos, encolhendo a centímetros de distância os que já estiveram separados por três séculos ou os que jamais se souberam, e porque jamais se souberam, jamais se imaginaram vizinhos. Lugar de rememoramento. E quanto maior a idade de uma biblioteca, que afinal se constitui com o tempo, mais demorada e vasta quer ser essa ocupação da relembrança.

Carregamos nossos livros de casa em casa como se eles nos guardassem tanto quanto os guardamos. E essa é uma das estações dos velhos leitores: ir aos livros não mais como quem desbrava, senão como quem revisita o que já amou, por ter amado. Ir aos livros não exatamente como quem estuda, senão como quem constata. Reler depois que a vida clareia a coisa lida, o que é da ordem de contemplar cachimbando.

E que prazer, depois de muitos diferentes agrupamentos desses livros, que foram se somando ao longo dos anos e das casas, poder recombiná-los com mais loucura do que antes, fazer se beijarem mais amiúde os de continentes remotos, os de vasto céu e os de chão aderente, todos os lúbricos da palavra, poetas do mundo todo e seus cantos condensados numa sala, e o prazer de fazer coexistirem numa mesma estante os de trasanteontem e os de agora, sem a menor necessidade de distinções ou justificativas, sendo já a biblioteca ela mesma o reino dos nossos eleitos.

Desse microcosmo, que guarda viagens no tempo, recupero o livro que abri pela primeira vez há vinte e cinco anos. Uma antologia de Emily Dickinson que era de minha mãe e lá longe eu lhe tomei (agora ela saberá!). Um livro que está entre os que fundaram essa vileta, num primeiro abrigo de casulo e anel de luz. Uma centena de poemas. Todos aqueles enigmas exsudando do microcosmo de um jardim, dando na ousadia de substantivos capitais. Abelhas, mariposas, um rato, o despontar da noite no gramado, lírios-do-vale, um outeiro vermelho-sangue, um vulcão, um vórtice de rosas.

Nossas bibliotecas são também como esses jardins mínimos, de verde quase antigo, pois não são? Onde passamos, em silêncio marulhado de zumbidos, manhãs ou tardes ou noites sem conta. E agora, agora mesmo, bendito sábado!, quantos de nós não estão a um gesto dessa hora interminável?

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

Rascunho