Pensei em não escrever sobre a absurda ideia de taxação de livros em 12% proposta pelo Governo Federal como parte da reforma tributária. Naturalmente, há coisas mais importantes acontecendo. O Brasil passa dos 400 mil mortos, com tudo indicando que em algumas semanas esse número chegará a meio milhão.
Mas daà o ministro Paulo Guedes dá mais uma daquelas declarações de preconceito contra pobres, reclamando das filhas de porteiros que chegaram às universidades por meio do Fies. Da mesma forma que reclamou da empregada que viajava para a Disney com o dólar baixo, quando faz isso é como levantar um tapete sob o qual reside um ponto de vista muito estabelecido pelas nossas elites. A gente se espanta com o absurdo da fala do ministro, mas nessas horas não deixo de me lembrar de como essa linha de pensamento está tão introjetada na sociedade, naqueles que nos cercam em casa, no trabalho, na rua.
Para quem vem da pobreza, o preconceito com os de cima da cadeia alimentar social não é nenhuma novidade. A diferença entre elevador social e de serviço fica meio que estampada como uma convenção desde que nascemos. Mas o que causa mais espanto é ver como os conceitos são martelados entre os pobres, tão martelados que reproduzem o cerceamento no automático, especialmente dos mais velhos para os mais jovens.
Esta crônica, já com cara de depoimento – e nem ligo, pois a crônica é como coração de mãe, abraçando muitas categorias de textos –, ficaria pequena se eu arrolasse os casos que sofri ou presenciei ao longo da vida em que a nossa gente pratica aquela famosa teoria do siri na lata. A ideia é que nenhum consegue sair da lata, mesmo rasa, porque os que tentam chegar à borda são puxados pelos demais.
Como o Paulo Guedes disse, de forma arbitrária e demonstrando grande ignorância sobre o assunto, livro é coisa de rico e a taxação desse bem não faria diferença entre os mais pobres. Poxa, ministro, bastaria ir no Google pra não passar mais essa vergonha. Corrijo: acho que essa turma não tem vergonha mesmo de ser ignorante.
Mas vamos aos fatos. Voltei a um artigo de opinião que publiquei no jornal O Globo lá por 2002, quando ainda era novinho mas tentava entender o nosso campo de trabalho, na pretensão de fazer um retrato 3×4 da leitura no paÃs. Chamava Literatura sitiada. Ali, tentava lembrar que o acesso a livros é muito restrito, tendo como exemplo a questão geográfica do Rio de Janeiro: as livrarias se concentravam entre o Centro e a Zona Sul, demonstrando como o interesse pelo consumo de livros como bem cultural apontava para onde havia maior concentração de renda. A coisa não mudou. À exceção das livrarias de shoppings, esse comércio praticamente não existe nas áreas mais populares. Mas isso é consequência de algo que faltou antes, que é uma educação para a leitura, tanto no sentido geral quanto no especÃfico. Para pegar o Rio de Janeiro mesmo, o quadro das bibliotecas públicas é periclitante. Aliás, em Madureira, bairro celebrado pela riqueza cultural e amplamente visitado pelas elites afoitas pela experiência de vida suburbana, não tem uma biblioteca pública.
Mas o fato é que os pobres têm fome de livro. Basta observar o resultado do trabalho voluntário, a qualidade do serviço de ONGs e tantas iniciativas que revelam o óbvio: se os pobres não sentem falta do que não conhecem, é obrigação da polÃtica pública oferecer e apresentar as possibilidades. Não pode ser coisa esquisita pobre viajar pra onde quiser, se tornar doutor e escrever livros.
Isso me lembra de quando passei por Lyon e fui conversar com alunos na universidade, para lançar a edição francesa do meu romance O próximo da fila. Um dos alunos de Letras trabalhava no McDonald’s da cidade, o que rendeu um ótimo papo, mas evidenciou que na França não é algo extraordinário um atendente de lanchonete na universidade. Por que aqui é?
É por essas e outras que curto muito as postagens dos Funkeiros Cults, jovens que, usando linguagem própria, resumem vários livros e desfazem o estigma de que a trinca preto, pardo e pobre não combina com livro.
Um grande exemplo desse estranhamento eu vi por esses dias, quando o meu camarada Jessé Andarilho, escritor e ativista (de verdade, não esses de redes sociais que são aguerridos nos posts de lacração e autoafirmação mas no mundo real não movem uma palha) cultural, deu uma palestra e assinou livros num canteiro de obras. O autor já quebrou o sistema simbolicamente ao criar uma biblioteca popular onde havia um posto policial abandonado em Antares, onde cresceu.
Diferentemente do que o ministro e o atual governo apregoam, um grande passo seria taxar os mais ricos (e as igrejas milionárias, não?) e investir para que as empregadas, os porteiros e os trabalhadores de obra tenham grande acesso à liberdade e riqueza que só a leitura oferece.