🔓 Literatura e vida

Uma conversa com Maria Esther Maciel sobre o retrato dos bichos na literatura, leitura e escrita durante a pandemia
Ilustração: Denny Chang
01/07/2021

Conversa com Maria Esther Maciel

1.
Carola: Dois encontros com você me marcaram muito, o primeiro e o último. No primeiro, eu estava começando minha trajetória como escritora, tinha acabado de lançar Flores azuis, e nos encontramos num evento, acho que em São João Del Rei. Lembro que fiquei muito impressionada com você, com a sua inteligência, sua sensibilidade e visão da literatura. Foi um encontro muito importante para mim. Uma admiração que foi crescendo à medida que eu te lia e os anos se passavam. Nosso último encontro, dois anos atrás, num evento aqui na Alemanha, também foi muito especial, acho que há uma verdade, uma coragem na sua fala (e na sua escrita) que me emociona muito e de certa forma me atravessa. Curiosamente, não se trata de algo mensurável, e mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, me serviu de guia. E agora eu faço essa narrativa que entrelaça escritora e obra. Como é para você a relação literatura e vida? Que caminhos ela percorre?

Maria Esther: Os encontros inesperados e os esperados são imprescindíveis para que surjam as trocas e as relações de amizade que ultrapassam a esfera estritamente literária. Quando nos encontramos em São João del Rey, eu apenas te conhecia pelo seu romance, que eu acabara de ler e tinha me impressionado muito. Digo que me senti honrada por estar ali, com uma autora que já havia entrado no meu repertório contemporâneo de admirações literárias. Continuei a acompanhar seu trabalho e voltamos as nos encontrar outras vezes, de forma esparsa. Já o nosso último encontro em Colônia foi diferente: ali selamos uma espécie de cumplicidade pessoal, para além da literatura, que posso chamar, com alegria, de amizade. E fico feliz em saber dessa sua emoção diante da minha fala e de minha escrita. Tudo isso que você expõe mostra que a vida e a literatura estão intrinsecamente ligadas. Os encontros, as viagens, as conversas em bares/restaurantes depois das atividades literárias, tudo isso não deixa de incidir em nossa formação e em nosso processo de criação. Graças a esses momentos, aprendi muito sobre o meu ofício de escritora e professora. Em resposta às suas duas perguntas finais, eu diria que vida e literatura são indissociáveis, ainda que haja dissensões entre elas e não seja, necessariamente, possível explicar uma através da outra. Elas mantêm uma consonância instável. São vias oblíquas que se entrecruzam e se iluminam reciprocamente sem, no entanto, se confundir. Vejo a vida vivida (e imaginada) como a matéria-prima para a escrita, mas o que dessas experiências vitais restam no texto é sempre outra coisa. Ao mesmo tempo, é possível que a vida também seja moldada, até certo ponto, pela literatura, pelas leituras que fazemos. E você, como lida com esse amálgama vida/literatura?

Carola: Sim, concordo totalmente, a vida é a matéria-prima, mas o texto é sempre outra coisa. Acho que tem a ver com o fato que o texto literário, por mais controle que imaginemos ter, diz sempre mais do que era a nossa intenção de dizer, diz outras coisas, diz além. Talvez seja isso o que mais me fascina na literatura, essa linguagem furada, que toma corpo nas entrelinhas, que vem e vai além de nós. Por outro lado, há nessa relação com a literatura, um aprofundamento da vida, que nos leva a um saber que não necessariamente é racional, mas tem a ver com a experiência, com aquilo que ressoa em nós. Então para mim a arte é uma forma do bem viver (da maneira como os povos originários o pensam), uma possibilidade de aprofundar a vida, de torná-la mais intensa e reveladora.

2.
Carola: Sua obra, desde o primeiro livro que li, O livro dos nomes (ficção), até a minha mais recente leitura, As ironias da ordem: coleções, inventários e enciclopédias ficcionais (ensaio), fala direta e indiretamente de um sistema de classificação. Você diz:

Sempre fui fascinada por listas, coleções, enciclopédias e dicionários. Assim como sempre me instigaram os escritores e artistas capazes de incorporar em suas obras procedimentos de classificação por vias inusitadas e imprevisíveis.

Me vem à mente o trabalho da Rosângela Rennó, numa Bienal de SP, acho que de 2016, com a obra Menos valia, ela reuniu e catalogou uma série de objetos garimpados em mercados de pulgas. Havia ali uma narrativa que sempre me interessou, a narrativa do esquecimento. Como se organizar, catalogar nos permitisse encontrar uma saída.

Fico pensando na pandemia e na situação terrível pela qual passa o país, que é um estado de caos, será que a literatura, por meio de suas estruturas, pode nos ajudar a organizar (de forma inusitada e imprevisível) o que é apenas vazio e morte?

Pensei agora em Borges, com O livro dos seres imaginários. Talvez fosse possível um Livro dos seres inimagináveis.

Maria Esther: Adorei a ideia de um “Livro dos seres inimagináveis”. Seria um exercício instigante a ser feito nestes tempos de caos pandêmico e político que estamos vivendo. Aliás, Borges sempre foi a referência principal para minhas incursões teóricas e literárias nas listas, coleções, enciclopédias e dicionários, não apenas por fazer um uso insólito desses sistemas de classificações, mas também por mostrar o quanto esses sistemas são precários, insuficientes e subjetivos. Para ele, os verbos inventar e inventariar estão intrinsecamente ligados. Suas coleções não incluem só as coisas, as palavras, os seres, os livros, mas também os cacos de objetos que já foram destruídos, as coisas que poderiam ter sido e não foram, as perdas. Existe aquele lindo verso dele: “Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las, e que essas perdas, agora, são o que é meu”. Estamos num momento de grandes perdas, de um país que se transforma em um amontoado de cacos do que está sendo destruído, de situações que poderiam ter sido e não foram. Fazer um inventário do caos seria mais uma loucura em meio a toda essa loucura. Então, resta-nos apegar às coisas que ainda existem, tentar uma ordem possível dentro da desordem de tudo, como forma de sobrevivência. A literatura pode ser um espaço possível para essa tentativa de “organização“ inusitada e imprevisível do que se afigura, cada vez com mais força, como vazio e morte. Não vi essa exposição da Rosângela Rennó, mas tenho o catálogo Menos-valia (leilão), que saiu em 2012, que tem como uma das epígrafes um fragmento de Walter Benjamin, que adoro. Cito só um pedacinho: “Aqui temos um homem cuja tarefa é recolher na capital o lixo do dia que passou. Tudo o que a cidade grande jogou fora, tudo o que ela perdeu, tudo o que desprezou, tudo o que destruiu”. É desses objetos descartados, que se mantêm como entulho, que ela se vale para compor o seu inventário das coisas que já não valem nada. Nestes tempos da peste, quando sair às ruas passou a ser um perigo de contágio, cabe-nos recolher e catalogar as coisas, os restos e os descartes que estão em nossos espaços domésticos, em nossas “prisões domiciliares”. Algo que tem mais a ver com Arthur Bispo do Rosário, que passou 50 anos recluso, catalogando o seu pequeno espaço ao redor para, então, reconstruir o mundo depois da destruição de tudo. Voltando a Borges e à sua ideia de livro, como você escreveria esse “Livro dos seres inimagináveis”?

Carola: Você falou tantas coisas importantes. Que lindo esse verso do Borges, sobre as coisas que perdemos serem o que realmente nos pertence, que bonito isso. Talvez por nossa existência se constituir em torno de uma falta primordial. Ideia que está conectada à sua outra citação, do Benjamin. Um inventário do lixo, do que não serve, de certa forma um inventário da falta. Que é o que nos faz humanos. Lembrei de uma frase de Lacan, que diz que amar é dar o que não se tem, ou seja, a própria falta. Talvez esteja justamente na fragilidade a nossa salvação. E respondendo à sua pergunta, sobre como eu imagino esse “Livro dos seres inimagináveis”, a princípio penso que poderia ser uma espécie de livro do Não. Saberíamos o que eles não são, o que eles não fazem, o que eles não têm. E a partir dessas informações nos restaria apenas o exercício da aproximação. E devolvo a pergunta, o que seria para você um “Livro dos seres inimagináveis”?

Maria Esther: Acho que eu precisaria pensar um pouco mais sobre esse impossível livro. Ou seria ele possível? Cheguei a pensar num catálogo de animais pequenos, corriqueiros e aparentemente insignificantes, como pulgas, piolhos, formiguinhas, mosquitos, grama, minhocas, tão difíceis de serem imaginados enquanto individualidades. Mas acho que sua ideia é melhor: uma espécie de livro do Não. Perfeito! Se me ocorrer mais alguma ideia, te escrevo.

3.
Carola: Animal e literatura é um tema que aparece com frequência em seus textos, tanto literários quanto acadêmicos. Aliás, seu livro Literatura e animalidade (que eu adoro) é uma das obras pioneiras nesse tipo de estudo no Brasil. Tem um ensaio da Ursula K. Le Guin, chamado The beast in the book, que fala sobre isso, destaco o seguinte trecho:

In postindustrial civilisation, where animals are held to be irrelevant to adult concerns except insofar as they are useful or edible, animal story is mostly perceived as being for children. […] Perhaps we give animal stories to children and encourage their interest in animals because we see children as inferior, mentally “primitive,” not yet fully human: so we see pets and zoos and animal stories as “natural” steps on the child’s way up to adult, exclusive humanity —rungs on the ladder from mindless, helpless babyhood to the full glory of intellectual maturity and mastery.

Nós colocamos os animais no lugar do outro, aquele que está lá para, à guisa de oposto, confirmar nossa humanidade. E pensando pelo avesso está o perspectivismo amazônico, como o define Eduardo Viveiros de Castro, uma cosmogonia em que no início tudo era humano, e que após um período em que as metamorfoses eram possíveis, ficou em cada grupo (macacos, javalis, papagaios, etc.) a certeza da própria humanidade. Que oportunidades nos oferece o binômio animal-literatura para além de nós mesmos? Quais são as (im)possibilidades ao se escrever o animal?

Maria Esther: Minha paixão pelos animais remonta aos tempos rurais que vivi nos arredores de Patos de Minas. Na minha ficção, eles sempre estiveram presentes, desde O livro de Zenóbia. Mas só a partir de 2008 resolvi também me dedicar a eles nas minhas pesquisas acadêmicas e me envolver com o que chamo de “zoopoéticas”. Desde então, tenho me dedicado a sondar como os animais atravessam a literatura, seja como personagens ou referências em narrativas de ficção, seja como imagens e evocações poéticas. Aos poucos, comecei a entrar, de forma mais efetiva, também nas questões éticas, políticas e ecológicas que envolvem as relações entre os humanos e os animais não humanos, a partir da leitura de obras de filosofia, etologia e biopolítica. Sem dúvida, os limites e liames entre humanos e não humanos, literatura e animalidade, tornaram-se um desafio ético e estético muito importante para quem escreve. J. M. Coetzee lidou com isso de forma magistral em seus livros A vida dos animais e Desonra. Mas como escrever o animal? Como inseri-lo como um “eu” dentro de um poema? Como biografar um ser não humano, em sua alteridade radical? Creio que, esse mergulho na animalidade, essa travessia das fronteiras entre os mundos humanos e animais através da imaginação e da empatia, tudo isso torna possível essa escrita do animal. Não sabemos o que se passa na esfera íntima de um boi, um cão, um urso, uma barata, uma onça, um macaco, um javali, um papagaio, mas podemos imaginar e capturar, pelos sentidos, o que eles diriam caso tivessem acesso à linguagem verbal. Cabe aos poetas e narradores, então, “traduzir” isso em palavras humanas. Nesse sentido, o perspectivismo ameríndio, tal como foi teorizado por Viveiros de Castro, tem dado uma enorme contribuição para pensarmos esse trabalho de “tradução” interespécies. Ainda assim, toda escrita sobre o animal não deixa de ser um construto humano. Não li o livro de Ursula K. Le Guin, mas tendo a concordar com ela. Os conceitos de humano, humanidade e humanismo foram construídos a partir da exclusão da animalidade e da legitimação da racionalidade como valor soberano. De fato, o clichê de que as histórias de animais só servem para crianças tem a ver não apenas com a marginalização dos animais como seres irracionais, como também com uma visão equivocada sobre a infância — tida como “pré-humana”, ainda desprovida de razão. Enfim, esse território da animalidade (que também nos habita) é fascinante e instigante, podendo nos levar à própria reconfiguração do conceito de humano.

Maria Esther: Eu também acho que se trata de um território fascinante, especialmente por isso que você diz, a reconfiguração do conceito de humano. Deleuze fala num devir-animal, devir-criança. Eu gosto muito desse conceito porque ele não se atém a uma ideia de “fingir ser o outro”, mas de deixar-se tocar pelo outro, permitir que o outro ressoe em nós e nos transforme (que é o que você faz de forma tão bonita na sua literatura). A gente que vive num mundo em que o outro, seja natureza, animais, crianças, mulheres, etc., está sempre num lugar de objeto, a ser usado, explorado, temos muito a aprender nessa busca por outras formas de encontro.

Maria Esther: Como diria a portuguesa Maria Gabriela Llansol, “um encontro inesperado do diverso”.

4.
Carola: Da última vez que nos encontramos, você estava pesquisando sobre Hildegard von Bingen, que é uma dessas figuras que sempre me fascinou. Entre os tantos aspectos interessantes (a botânica, a música, etc.), destaco a conexão entre misticismo e literatura. Como é isso para você?

Maria Esther: Minha pesquisa sobre Hildegard von Bingen não se encerrou naquela minha visita à Alemanha, mas permanece cada vez mais intensa. Ela é a referência principal de um próximo livro meu, em processo de escrita. Tenho feito também algumas recriações de seus verbetes sobre plantas e animais. Com essas incursões, voltei a entrar numa esfera mística que sempre me fascinou: a das visões, das vozes trans-humanas, das profecias. Os visionários me estimulam muito a imaginação. Agora estou entregue a essa mística, que me leva também a obras teológicas incríveis, como a de Santo Agostinho. O meu lado místico era muito forte na adolescência e na primeira juventude. Depois foi sendo encoberto pela formação acadêmica e por outros interesses de ordem intelectual. Sabia que até astrologia eu estudei por volta dos 18 anos? Cheguei a fazer mapas astrais. Li, com voracidade, os ocultistas, aprendi muito com a tradição hermética, me interessei pelo Zohar, pela alquimia, pelos gnósticos. A História da filosofia oculta, de Alexandrian, me acompanhou por um bom tempo. Depois, migrei para o budismo zen. Sei que sua literatura, Carola, também tem uma forte conexão com a mística. O seu último romance, Com armas sonolentas (que acho primoroso), tem uma densidade admirável nesse campo. Para não mencionar a evocação de Sóror Juana Inés de la Cruz no livro, começando pelo título. Temos essa afinidade, não é? E não só nas interseções entre literatura e mística. Acho que nunca te disse, mas acho o título O inventário das coisas ausentes um dos mais lindos da literatura contemporânea e condiz com meu apreço pela ideia de inventário/invenção.

Carola: Ah, obrigada! Fico muito feliz! Sim, temos essas afinidades. Seria interessante pensar a mística e o inventário/invenção como “procedimentos literários”. Procedimentos aparentemente opostos, o inventário como ordenamento do mundo e a mística como desorganização do mundo, um constante criar e desfazer. Uma criação permeada de incerteza aliada a um caos alinhavado pela “verdade” inacessível.

Maria Esther: Que lindo isso, Carola!

Minha paixão pelos animais remonta aos tempos rurais que vivi nos arredores de Patos de Minas. Na minha ficção, eles sempre estiveram presentes.

5.
Carola: Eu adoro O livro dos nomes, destaco aqui um trecho:

Antônio nunca leu um livro inteiro na vida, e isso não lhe causou nenhum dano, comentam os amigos. Sua sabedoria é intrínseca, prescinde de artifícios. Mas sua mulher, Sílvia, em cujos olhos se vê um quê de sinistro, muitas vezes o humilha, chamando-o de “um ignorante que não sabe distinguir dois ss de um cê-cedilha”. Aliás, de ofensas como essa Antônio anda exaurido há muitos anos, embora não leve tão a sério as infâmias de uma pessoa assim, como Sílvia, que insiste em afirmar que alguém só se torna livre quando vive como se não tivesse nascido. Ele tem pena dela, por isso. Mas sabe que ainda a ama como não mais deveria. É demasiado tarde para acertar — costuma dizer para si em horas de desonra.

Mas destaco especialmente a frase: “Alguém só se torna livre quando vive como se não tivesse nascido”. Me parece uma frase budista. Às vezes uma frase funciona como um leitmotiv para toda uma vida. A de Antônio parece ser: “é demasiado tarde para acertar”.

Maria Esther: Obrigada pelas palavras sobre O livro dos nomes, Carola. É um livro que tem muito a ver com minha história, com pessoas que conheci e com quem convivi, embora eu tenha ficcionalizado tudo. O Antônio foi inspirado numa pessoa que me foi muito especial. Morreu cedo, não deu conta do fardo de sua própria história. Sim, é sempre tarde para acertar. Mas, às vezes, tem-se a ilusão do acerto. Quanto à frase “alguém só se torna livre quando vive como se não tivesse nascido”, eu não tinha pensado nessa dimensão budista quando a usei no livro. Talvez ela tenha surgido a partir de minhas leituras de Emil Cioran, meu filósofo preferido.

Carola: Essa frase ficou ressoando aqui. É algo que sempre me pareceu misterioso, quando uma frase (ou um verso) contém muito mais do que parece dizer, e com o passar do tempo as palavras vão se adensando, no corpo, na alma.

6.
Carola: Quando a pandemia começou, não conseguia ler, era como se as palavras tivessem perdido o sentido. Depois passei a ler poesia, e por muito tempo, era a única leitura possível para mim. Depois me dediquei aos ensaios. E fiz algumas poucas incursões no romance. Como se a pandemia e todas as suas consequências tivessem nos jogado numa espécie de irrealidade e eu precisasse readequar as leituras a essa nova situação. E para você, como está sendo a relação com a leitura?

Maria Esther: Bem, minha experiência não foi muito diferente no início da pandemia. Tão logo comecei meu confinamento, escolhi vários livros para ler ao longo dos dias de solidão, pois agora moro sozinha. Mas eu não conseguia me concentrar na leitura de romances e ensaios, já que estava muito inquieta e ficava o tempo todo atenta às notícias que me chegavam pelos noticiários e pelas redes sociais. Foi a poesia que me trouxe alento, tornando-se minha leitura possível, além de algumas poucas narrativas curtas, que se somaram aos poemas. À medida que a situação se agravava, o trabalho se acumulava e minha insônia aumentava, fui me dando conta de que era necessário dar um jeito de lidar com a ansiedade, o temor e a tristeza. Minhas sessões de análise por telefone me ajudaram muito, assim como os comprimidos de Ansiodoron, um remédio antroposófico maravilhoso. Aos poucos, retomei a leitura de todos os livros que eu queria ou precisava ler, além de ter me voltado bastante para a escrita. Preparei um novo livro, Pequena enciclopédia de seres comuns, que acabou de ser publicado, e recomecei a escrever um romance interrompido, além de diversos ensaios. Há muito tempo eu não lia e escrevia tanto como agora, embora às vezes me sinta tomada por uma paralisia, um certo torpor. Você tem escrito muito também durante a pandemia?

Carola: Queria te dizer que eu amei Pequena enciclopédia de seres comuns. Foi uma leitura que me fez bem, curioso dizer isso, não costumo classificar livros dessa forma. Mas em meio à pandemia, foi um momento de grande beleza, e também um descanso. Quanto à pandemia, no meu caso aconteceu uma coisa muito curiosa, quando a pandemia começou eu estava escrevendo um romance sobre “o fim do mundo”, foi uma sensação muito assustadora, era como se a vida tivesse sido tomada pela literatura, e eu desisti do livro (que já tinha umas oitenta páginas). Mas respondendo à sua pergunta, eu tive duas fases, na primeira, que corresponde aos quatro primeiros meses da pandemia, quando eu não conseguia escrever nada (para nossa lista de coincidências, o Ansidoron também me ajudou muito nessa época). Minha única escrita era um diário de sonhos que, inclusive, serviu para as minhas sessões de análise (por Zoom). O “resultado” dessa época estranha foi um livro de poesia (eu nunca tinha escrito poesia), algo muito inesperado. Na segunda fase, desenvolvi um projeto no qual eu já vinha trabalhando há algum tempo, que é um livro de ensaios. E comecei a escrita de um romance, se vai vingar ainda não sei. De qualquer forma, sinto essa urgência de criar, de ler, de trocar ideias com as pessoas que admiro, de encontrar formas de afirmação da vida. Talvez tenha a ver com essa necessidade de dar sentido ao caos.

Maria Esther: Muito bom saber que você leu esse livro que escrevi para burlar os medos e sobressaltos provocados por este momento sinistro que estamos vivendo no Brasil. Imaginar esses seres animais e vegetais de diferentes famílias e espécies, a partir de um jogo entre biologia e ficção, foi um exercício que me fez muito bem, que trouxe à tona um pouco do humor necessário para o enfrentamento de um agora assustador. Como aconteceu com você e já disse anteriormente, a poesia tem sido minha principal aliada nestes tempos de confinamento. Tanto que, antes da Pequena enciclopédia, escrevi um livro de poemas, O livro das sutilezas, que, por sua vez, me conduziu a esse último. Comecei também a escrita de um romance, que é uma modalidade de texto que demanda concentração e continuidade. Ele está indo a passos lentos, justamente por conta da minha incapacidade, no momento, de me concentrar em algo que requer uma entrega mais efetiva. Tudo em mim, hoje, é um ir e vir, um avanço e um recuo ao mesmo tempo. Sinto que os textos mais fragmentários são os que mais me envolvem, por enquanto. E que maravilha ouvir que você escreveu um livro de poesia! Estou curiosa. E, sim, quero muito ler o seu livro de ensaios.

7.
Carola: Termino com um poema de Silvina Ocampo.

Los delfines

Los delfines no juegan en las olas
como la gente cree.
Los delfines se duermen bajando hasta el fondo del mar.
¿Qué buscan? No sé.
Cuando tocan el fin del agua
despiertan bruscamente y vuelen a
subir porque el mar es muy profundo y cuando
suben ¿qué buscan? No sé.
Y ven el cielo y les vuelve a dar sueño
y vuelven a bajar dormidos,
y vuelven a tocar el fondo del mar y
se despiertan y vuelen a subir.
Así son nuestros sueños.

Maria Esther: Que lindo poema, Carola! Gracias por me apresentá-lo. E já que estamos em interação ambígua (porque é sempre uma interação ambígua) com os não humanos, termino também com um poema de Fiama Hasse Pais Brandão:

O melro

Tanto quanto eu, ele ama
as folhas secas, debica-as
e devora-as. Está a procurar
debaixo da face da folha
os vermes. Percorre com apuro
recessos, as nervuras.
Trabalha com amor
Para a sua memória.

Carola: Que lindo! Deu vontade de criar uma conversa inteira só com poemas e algumas pequenas intervenções. Conversar com você é sempre inspirador.

Maria Esther: E vice-versa.

Pequena enciclopédia de seres comuns
Maria Esther Maciel
Todavia
109 págs.
Maria Esther Maciel
Nasceu em Patos de Minas (MG), em 1963. Poeta, ensaísta e ficcionista, é professora colaboradora da Unicamp e pesquisadora do CNPq. Autora de Livro dos nomes, Longe, aqui. Poesia incompleta 1998-2019, Literatura e animalidade, entre outros. Vive em Belo Horizonte (MG).
Carola Saavedra

É autora, entre outros, dos romances Flores azuis (eleito melhor romance pela Associação Paulista dos Críticos de Arte), Paisagem com dromedário (Prêmio Rachel de Queiroz na categoria jovem autor), O inventário das coisas ausentes e Com armas sonolentas. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os 20 melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. Desde 2019, é professora e pesquisadora na Universidade de Colônia.

Rascunho