Era uma vez uma periferia urbana no meio da floresta.[1] Nela vivia uma família feliz na maior parte do tempo, exceto quando chovia, ocasião na qual as goteiras tipo chão de estrelas[2] se mesclavam às enchentes[3]. Mas contanto que não cortasse o wi-fi, todo contratempo era passível de superação imediata.
Pai, mãe e dois filhos, que se chamavam João e Maria[4], compartilhavam a rede tranquilamente, sem nenhum comprometer a largura de banda para o outro, até que veio a crise. “Que crise?”, perguntavam-se, até que sentiram na própria carne quando foi necessário diminuir a quantidade de MB da conexão.
À noite, os pais conversavam enquanto faziam contas e gráficos de risco SWOT:
— Já não são grandinhos demais para ficar em casa? Não é hora de saírem em busca de um sistema meritocrático? — argumentou a mãe empreendedora.
— Sim, essa geração quer moleza. Com a idade deles eu mesmo já tinha o meu 3G próprio! — sustentou o pai, com autoestima elevada.
— Peraí, mas na sua idade o advento da revolução digital nem existia ainda! — lembrou-se a mãe, acusando o pai de superestimar um reles pager que, de fato, o patriarca teve à época[5].
Mal sabia o casal que os dois jovens, apesar de cada um com seu fone de ouvido e aparentemente focado nos canais de vídeo que assinavam, na verdade lançavam mão das propriedades multitarefas da qual a geração Z[6] era dotada. Daí que os moleques ouviram tudo e resolveram problematizar:
— Esses velhos querem roubar o nosso empoderamento! — Maria disparou num zap.
— Sim, o nosso protagonismo! — respondeu João pela mesma comunicação expressa.
Em sistema cooperativo, imbuídos de pertencimento e perspectiva de reconstrução do real enquanto sujeitos num mundo pós-moderno e fragmentado, os dois acordaram mais cedo e decidiram, eles mesmos, tomar uma atitude antes proativa do que reativa: preencheram formulário online de intercâmbio numa startup e partiram rumo ao business do negócio[7] que é o mundo corporativo. Quando os pais acordaram, já não havia nenhum feedback da prole e ficaram em dúvida se a iniciativa dos jovens configurava um statement.
Na floresta, João e Maria se guiavam pelo roteiro de captura de pokémons no aplicativo de realidade aumentada que haviam instalado recentemente. Entre pikachus e bubassauros, eis que João avistou logo perto um monstrinho raro:
— Olha, Maria, um guéri-guéri[8] lendário!
O spot em que a trilha os indicava era nada menos que uma lan house totalmente coberta de roteadores wi-fi, mas de sinal fechado, cuja senha era conhecida apenas pela proprietária, uma senhorinha toda-toda com legging de academia. Ao avistar os dois jovens que já tentava hackear o sistema, a mulher na melhor idade bradou:
— Parem já com isso, petizada, que eu domino esse gap geracional!
— Corre, João, que ela é toda vitage!, ordenou Maria, já em dúvida se o choque se tratava de uma vivência ou experiência[9].
Uma vez que não foram bem-sucedidos na empreitada de curto prazo, os dois concluíram que o melhor por ora era voltar para a segurança dos pais, até que outra janela de possibilidades se lhes fosse aberta rumo à conquista da autonomia e liberdade individual enquanto sujeitos subjetivos cientes e conscientes da sua existência em si mesmos e no horizonte de perspectivas e releituras de mundo.
Mas como tivessem capturado todos os pokémons da trilha, não era mais possível encontrar o caminho para casa. E João e Maria foram freelas para sempre.
Moral 1: A única coisa analógica e digital ao mesmo tempo ainda é o exame de próstata.
Moral 2: Se você é jovem ainda, jovem ainda, amanhã velho será, será.
[1] Não pode seee, bradaria um urbanista tradicional, que postaria logo um textão com indiretas, mas ignorando que as noções de espaço e território transbordam de uma geografia limítrofe e classista em prol de uma noção subjetiva do locus identitário.
[2] Tu pisavas no meu calo, sua distraída!
[3] Note aí, no esquema água de cima e água de baixo, uma aplicação tipo práxis do conceito de modernidade líquida.
[4] Criatividade nos nomes não era o forte dos pais.
[5] O pai fazia estágio na Teletrim e havia sugerido contratar o Papa-Léguas como pássaro propaganda fazendo beep-beep, ideia logo descartada por copyrights e bom senso.
[6] Os mais velhos trollam tal geração como Z de zumbi, na verdade para ocultar o desespero para nomear a geração seguinte, uma vez que acabaram as letras do alfabeto.
[7] Ou o negócio do business?
[8] A evolução do lero-lero.
[9] Cf “Tratado Geral do Oco Exterior”, de Walter Celli.