šŸ”“ Gorda

Os desafios e batalhas de uma mulher gorda num mundo impregnado de gordofobia por todos os lados
Ilustração: Carolina Vigna
17/11/2022

No metrĆ“, vejo a moƧa gorda em pĆ©, encostada naquele pedaƧo de parede entre a porta e o primeiro banco. Ela sou-fui eu, sempre serei eu. Vejo nela as marcas dos abusos recebidos, das ofensas ouvidas, da desconsideração recebida. Ɖ uma moƧa linda, vaidosa, bem vestida, cabelo impecĆ”vel, maquiada. LĆŖ um livro, nĆ£o consegui ver qual mas nĆ£o importa. Certamente mais interessante do que todos os pseudomachos com quem jĆ” teve o desprazer de se relacionar. Ela tem um olhar baixo, triste. Quantas e quantas vezes jĆ” ouviu que era a pessoa certa para o trabalho mas, por ser gorda, serĆ” passada para trĆ”s por alguĆ©m mais ā€œapresentĆ”velā€. Quantas e quantas vezes jĆ” chorou sozinha no chuveiro porque alguĆ©m lhe disse que jamais a amaria enquanto fosse gorda. Ela sou-fui eu, sempre serei eu. Suas incontĆ”veis qualidades diminuĆ­das, obliteradas, por nĆ£o satisfazer a fantasia do outro sobre o que Ć© ou deixa de ser o corpo desejĆ”vel. NĆ£o me venham com ah mas a saĆŗde. SaĆŗde se mede. TriglicerĆ­deos, colesterol, açúcar, pressĆ£o, o que vocĆŖ quiser. O que a mulher gorda nĆ£o satisfaz Ć© a expectativa social do controle sobre o corpo do outro. Eu quero que se foda. Ela sou-fui eu, sempre serei eu. Fui gorda mais de dois terƧos da minha vida, da primeira Ć  Ćŗltima menstruação. Fui-sou magra antes e depois disso. Mas nĆ£o, Carolina, imagine, vocĆŖ nĆ£o tem problemas hormonais, basta parar de comer no McDonald’s. Ela sou-fui eu, sempre serei eu.

Mesmo sabendo de tudo que passo-passei por ser-sido gorda, o babaca do meu cunhado discutiu comigo por dias, afirmando que gordofobia não existe. Ele, gay, sabe na carne o que é sofrer preconceito e, no entanto, mesmo assim, na primeira oportunidade, virou opressor. De todas as ofensas recebidas, de todas as vezes em que minhas dificuldades e minha dor foram ridicularizadas, essa foi, de longe, a que mais me doeu.

A moƧa nĆ£o senta no banco vago. FicarĆ” desconfortĆ”vel, apertada, constrangida. Fica em pĆ©. Encaixou-se no vĆ£o, feliz por nĆ£o estar na passagem de ninguĆ©m. A moƧa apoia as costas na parede, ligeiramente inclinada para usar o vetor de forƧa a seu favor e nĆ£o precisar segurar nas barras de metal do banco. Sabe que sua presenƧa incomoda. Ela sou-fui eu, sempre serei eu. Batom vermelho como o meu. Ɖ uma declaração: sou gorda mas estou viva. A calƧa jeans comprada em loja para gordo nĆ£o estĆ” na moda, nĆ£o tem marca conhecida, marca boa. Desenvolvi uma raiva que nem te conto de roupa de marca. Hoje elas cabem em mim mas eu jamais caberei nelas. A moƧa estĆ” de fones mas, ao contrĆ”rio de mim, escuta a velhinha pedindo informação. Tira um dos fones da orelha, sorri e responde. Ela-eu nĆ£o pode se dar o luxo de se isolar, de nĆ£o ouvir o ambiente. O comentĆ”rio escroto vem de onde menos se espera e Ć© necessĆ”rio saber qual imbecil evitar pelo caminho. Me dou conta de que só passei a ouvir mĆŗsica mais alta depois de emagrecer. E me envergonho disso. Diminuo o volume. Ela sou-fui eu, sempre serei eu.

Um ex-namorado me disse que precisava se proteger emocionalmente e que evitava se entregar mais no relacionamento porque eu era gorda. Disse isso com todas as letras. Em homenagem, fiz a exposição Não me depilei para isso. Porque eu apanho mas também sei bater.

A moça guarda o livro na mochila e pega um crachÔ. Pendura no pescoço. Suspira. Mais um dia em que serÔ preterida em uma promoção porque não é o padrão que o cliente quer ver, porque não dorme com o chefe, porque não sucumbe à pressão de ser aquilo que não é, porque qualquer outra idiotice. Ela sou-fui eu, sempre serei eu.

Uma vez, uma das pessoas que eu mais amava me disse que estava muito preocupada com o meu futuro porque, como eu era gorda, nĆ£o arrumaria emprego ā€œnem de caixa das Casas Bahiaā€. Ontem meu pós-doc foi aprovado. EntĆ£o, eu quero que vocĆŖ se foda.

Ela sou-fui eu, sempre serei eu.

E nós duas mandamos você à merda.

Carolina Vigna

Ɖ escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho