Conheci Gelson Bini lá por 2010, quando fui participar da Feira de Livros de Jaraguá do Sul, no interior de Santa Catarina. Tinha lançado a antologia de contos Como se não houvesse amanhã, composta por contos inspirados nas canções da Legião Urbana. Tínhamos, na verdade, pois o livro foi composto por outros 19 autores fãs da famosa banda de Brasília. Acho que até hoje foi o projeto literário coletivo mais legal que já fiz, porque evocou nesses escribas muito da trajetória pessoal, uma vez que as músicas da Legião costuraram a infância e adolescência de toda uma geração.
No evento catarinense, descobri que um agente cultural ministrava um tipo de aula-espetáculo intitulada Literatura e rock em escolas, e que a nossa coletânea fazia parte dos livros utilizados. Acabei conhecendo um pouco mais do Gelson e do projeto Guia de Leitura, que ele realiza até hoje. Além do rock, Bini trabalha com terror, cinema, recontos clássicos e várias facetas para um tipo de educação para/pela leitura.
Mas o mais interessante é que, no contato com alunos das redes públicas, o mediador traz o importante componente da empatia, palavra tão usada de forma equivocada, mas que aqui se aplica pela identificação direta com seu público. Sua origem, que tem vários contatos com a minha e tantos outros trabalhadores da palavra, é de famílias pobres, nas quais a presença de livros não faz parte do cotidiano. O que também não é novidade, especialmente para as crianças e os jovens nas salas de aula, para quem, não raro, a ideia da leitura literária se transforma mais num trauma para a vida inteira do que qualquer outra coisa. Quantos, afinal, não tremem só de lembrar da fatídica pergunta “o que o autor quis dizer?”, ou de ter que contar sílabas de poemas cujo conteúdo também se reduziria a uma sequência de figuras de linguagem com nomes esquisitos que deveriam ser decoradas.
E Gelson Bini sabe que decorar mesmo não tem nada a ver com isso. Decorar é guardar no coração, não num jogo da memória utilitário valendo nota para ser esquecido ao fim do bimestre. Ele nos diz que o importante não é o que o autor quis dizer: como saber, se tantas vezes sequer o escritor se lembra das motivações pessoais e momentâneas disparadoras de um texto? O importante é o que o texto diz ao leitor. E se essa comunicação não consegue ser estabelecida, não é culpa de ninguém, ou mesmo que talvez tenha faltado uma mediação, ponte entre o texto e o leitor, algo que os professores deveriam fazer de forma instigante, e que também, por vários motivos (a crônica se tornaria um ensaio ou estudo estatístico), não acontece como poderia ou deveria.
Bini entende que não adianta contar sílabas poéticas para saber a diferença entre o decassílabo e a redondilha, se o conteúdo de versos é composto por palavras e ideias, não números frios. Se o texto não provoca nenhuma emoção, reflexão ou outro pensamento sentido (ou sentimento pensado), a literatura não acontece. Ela não tem acontecido. Ou pelo menos na potencialidade que temos num país que, solapado por décadas de desvalorização de educação e cultura, desenterra práticas de censura às artes e aponta para uma nova tributação sobre livros, tornando-os mais inacessíveis do que já são.
O mediador catarinense também sabe que apenas ensinar via decoreba as diferenças entre Realismo e Naturalismo, ou entre anacoluto e zeugma, não resultará em alunos que farão da leitura uma prática cultural espontânea ao longo de suas vidas. Se temos uma deseducação para a leitura como prática secular, refletida na fala do ministro da Economia, segundo o qual livro não é um objeto para pobres, a indignação se converte em motor para mudar essa realidade.
Como acontece com vários artistas da área, se as famílias não levavam livros para casa, os livros procuraram um jeito de encontrar o seu leitor. Bini trabalhou numa livraria, trocando o layout para dar destaque à literatura brasileira no lugar dos best-sellers da revista Veja. Quantas pessoas não descobririam nossos autores, quase sempre escondidos nas estantes do fundo, se essa transgressão fosse realizada em escala?
Gelson é uma figuraça da linguagem. Fisicamente, me lembra o ator Herson Capri, que agora é para mim o “Casalberto”, ex-marido da personagem Dona Hermínia, criada pelo genial e já saudoso Paulo Gustavo. Nas suas apresentações, veste-se do assunto, fazendo da leitura um palco irresistível ao jovem mais desinteressado. Disléxico, diz que aprende devagar, frase similar à de um jovem dessa mesma condição numa escola pública que visitei em Rennes, na França: ele queria ser poeta porque cada palavra chegava com dificuldade, por isso a valorizava. E assim aprendo mais uma lição nesses tempos de velocidade, vertigem e efemeridades.
Nessa humildade diante da grande literatura e dos grandes leitores, Gelson Bini nos guia pelo caminho dos bosques da ficção, para pegar emprestado o termo de Umberto Eco. Era outra vez, sua palestra-performance baseada em Guimarães Rosa, tenta apresentar a professores e alunos uma nova possibilidade de entendimento de histórias e leituras – de livros e de mundo. E nos lembra, também evocando a sempre atual Cecília Meirelles, que a vida só é possível se for reinventada.