Durante minhas curtas férias, nas quais me prostrei no lado esquerdo do sofá durante boa parte do tempo, logo de cara concluà que o planejamento feito para me dedicar a livros, filmes, séries, games e palavras cruzadas estava fadado ao fracasso. Mais ou menos como o fim de semana para o qual a gente se programa a fim de realizar mil atividades e cuja realidade se restringe a acordar tarde e ir ao supermercado.
Como quem se olha num grande espelho convexo, fiz reflexão. Nessa onda, optei por um exercÃcio radical que só agora encontrei condições de levar a cabo: desliguei o celular por alguns dias. O resultado é que ganhei um tempão que nem sabia mais que era meu, uma vez que nos tornamos escravos desse aparelho, cujas funcionalidades parecem ser tão vitais e necessárias quanto um marcapasso, um fêmur de titânio ou aparelho auditivo Telex.
Se hoje pagamos caro para ficar totalmente plugados, com uma saraivada de propagandas enchendo nossos olhos a cada vez que vamos ver um vÃdeo, ouvir música ou usar um aplicativo qualquer, acho que, em algum tempo, ficar offline é que vai ser cobrado. E mesmo esse serviço de spa digital vai ser vendido como uma experiência detox vintage, premium diferenciada, retrô advanced, com a mesma cara de pau que alguém teria se nos cobrasse uma taxa para respirar. E vai ter quem pague.
O fato é que, com mais tempo livre de zaps, rings e blinks, me voltei para a fila de leituras, diminuindo a pilha. Se leitura puxa leitura, então seguimos aqui com os livros-lugares que visitei por esses dias:
Três porcos, de Marcelo Labes (Caiaponte). Começo a listinha com um dos prosadores mais interessantes destas plagas. A temática do abuso infantil e suas consequências — no caso, a vingança — rendem uma narrativa forte e atual, com uma alegoria dos suÃnos que nos remete a Orwell.
Nem sinal de asas, de Marcela Dantés (Patuá). Romance de certa crueldade poética que nos apresenta Anja, uma personagem difÃcil de esquecer. (O gato Rinoceronte também.) A escrita tem umas técnicas que parecem ampliar as imagens de solidão e angústia.
Fé no inferno, de Santiago Nazarian (Companhia das Letras). O Nazarian, assim como boa parte da nossa geração (que começou nos blogs, a chamada Geração 00), está no auge da sua escrita. O genocÃdio armênio, iniciado na Primeira Guerra, é transportado para os dias atuais com estilo fluido. Livraço em tamanho e qualidade.
Mundos de uma noite só, de Renata Belmonte (Faria e Silva). O romance é uma saga familiar, algo que não tem aparecido tanto nos últimos anos em primeiros livros. As personagens demonstram sua força pela gradual desconstrução. A relação tempo/espaço, indicada no tÃtulo, tem papel fundamental na história.
A solidão dos anjos, de Marco Aurélio Cremasco (Confraria do Vento). Novo livro de contos do primeiro vencedor do Prêmio Sesc, que domina bem tanto o texto longo (procurem Santo reis da luz divina) quanto o curto. Neste novo, o destaque são os contos metalinguÃsticos, que resumem questões profundas do fazer literário, como se iniciassem debates.
Pequena coreografia do adeus, de Aline Bei (Companhia das Letras). Novo livro da autora de O peso do pássaro morto, que arrebatou leitores. Está de volta a técnica da escrita com a narração quebrada, imitando versos. E essas lacunas representam bem o que a separação de pais causa na vida dos filhos, tema desse belo e doloroso romance.
E lá se foram as férias.
Li por esses dias como o TikTok tem ajudado a vender alguns livros. Os caras de marketing não perdem tempo. Não consigo ver o nome desse aplicativo sem associar a Tico e Teco, mas pode um lance meio cringe — é incrÃvel como arrumam termos novos para coisas que sempre existiram, como as diferenças intergeracionais.
O fato é que esses livros, com suas complexidades, me deram férias de um mundo que parece cada vez mais ocupado por propagandas e dancinhas.