🔓 Ela, nua entre os sabiás

Uma leitura sobre “Os sabiás da crônica”, antologia organizada por Augusto Massi que reúne Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino e outros bambas
Ilustração: Alfredo Aquino
04/12/2021

Quase setenta anos depois de Vinicius de Moraes compor Mulher, sempre mulher em parceria com seu amigo Tom para Orfeu da Conceição, é dezembro, faz sol, e há uma cronista excepcionalmente bem-humorada enquanto lê Os sabiás da crônica, nova reunião histórica da famosa patota de cronistas que começou a se formar nos anos de 1940, que ao longo de décadas se encontrava para trocar ideias na mesa do bar e agora se reencontra nessa rica antologia organizada por Augusto Massi.

O time dos seis engravatados, embora cronistas, posa para a foto literalmente antológica: Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto e Carlinhos de Oliveira. A fina flor, ou como quer o epíteto de verão, a fina passarada da crônica. A foto, de 1967, foi feita na parte externa da paradisíaca cobertura do Braga, mas há outros registros, todos de Paulo Garcez. Na cena que estampa a capa da antologia, o fotógrafo considerou, para o equilíbrio da composição, a escultura “Mulher com mãos nos cabelos”, de Alfredo Ceschiatti. Pois sim! Aí está uma mulher! Como é que não? E ela está nua, bem ao gosto popular.

Vejamos agora a mulher, na seção primeira, de Rubem Braga. Ali, Bidu com seu “vestido excelente no corpo excelente” cantando madrugada adentro, às vezes com uma tristeza que o cronista só viu igual em voz de lavadeira pobre na beira do rio. Ali também a divertida descrição de um grupo com três diplomatas, dois jornalistas, um capitão-tenente, um tenente-coronel, uma loura e duas morenas. Também a inesquecível comparação do comensal inebriado, num almoço mineiro, da “amada de Salomão” com “torresmos trigueiros”, “alguns louros, outros mulatos”. Ou ainda um braço tépido de mulher, resgatando o cronista de seus pensamentos de morte. Também uma viúva de maiô preto, o sol contornando seu ombro num arco brilhante, e uma sonhadora distraída da conversa inteligente, a mirar o próprio braço como uma gata lambendo-se com os olhos.

Vejamos a seção segunda, do maior dos galanteadores e melhor dos melhores de copo, Vinicius de Moraes. Ali, claro, sobejam mulheres. Entre tantas, “duas crioulas divinas”, Ava Gardner se dizendo moralmente pestilenta e uma loura de maiô de elegância felina. E porque Vina tem, mais do que lábia, ganas de se encantar com a vida, lá vai ele noite afora com os amigos, de samba em samba, casamento em casamento, filho em filho. E porque a cronista sua leitora anda muito bem disposta, que bom sorriso não destila do samba do Ciro Monteiro, que se inspirou na própria toracoplastia para cantar três mulheres nascidas das três costelas que perdeu.

Na seção de Fernando Sabino, nada de exatamente peculiar ou restrito aos costumes da época, nem mesmo a mãe que deixa sua menina trabalhar na casa da madame por total falta de opções ou a mulher faminta, que ainda hoje continua o seu balé, embora não seja mais com o leiteiro, que leiteiros, nas cidades, já não existem.

Agora a seção de Paulo Mendes Campos. Lá está a linda mulher nua que ele mesmo nunca viu da janela e também a mulher entre um pé de jabuticaba e um vinho bom. Mulheres com a virtude da simpatia, outras, “lindíssimas, limpíssimas e alienadíssimas” no arremate da bebedeira da noite. Também lá a divertida teoria do cronista para o êxodo rural por impulso da libido.

Na seção de Sérgio Porto, vulgo Stanislaw Ponte Preta, quem? Tia Zulmira, claro. A sagaz imbatível e incomparavelmente rodada tia Zulmira. Também a “mulher-família” curiosa de como vivem “as outras”. Uma homenagem sentida a Dolores Duran e seu amor pela madrugada. E ainda a aparição da Messalina perturbando os acordes de um quarteto.

E agora a última seção, do Carlinhos de Oliveira. Por ali passam as “lindas moças do Arpoador”, passa também o susto do cronista com sua amiga feita mãe solteira e sorridente, passam “as incríveis mulatas de Solano Trindade” no Café Vermelhinho.

Passa a mulher chamada Lena, em sua minibata multicolorida, “assumindo finalmente seu lugar na selva do sensualismo”. E Leila Diniz, em Todas as mulheres do mundo. E também o cronista se autoproclamando “o cronista das adolescentes febris de Ipanema”.

Desfrutemos. Respiremos o ar da época com seu laivo de meninos púberes. Ao menos uma cronista bem-humorada vê com carinho esse Antônio Maria que Vinicius diz ser um bicho acuado diante da mulher.

E que cronistas do banal do cotidiano, que nada. A vida dessa patota era tudo menos banal e irrisória, em sua fingida distração eles se sabiam escrevendo história com seus casos fabulosos, entre amigos músicos, artistas, escritores, todos misturados. No ar rumoroso dos acontecimentos borbotando, estavam também Hélio Pellegrino, Jorge Amado, Lúcio Cardoso, Portinari, Di Cavalcanti, Tom Jobim, Caymmi, além das mulheres da música que ali se imiscuíam livremente entre os bêbados da madrugada, entre elas Aracy de Almeida, Odete Lara, Elis Regina, Bethânia, Nara Leão.

E quantas lições de ternura nas crônicas que uns dedicam aos outros, elogios de alegria de Paulo Mendes Campos a Sérgio Porto, de Fernando Sabino a Paulo Mendes Campos e Jayme Ovalle, de Sérgio Porto para Vinicius e Carlinhos de Oliveira, de Vinicius para Antônio Maria. E como não lembrar, com essa crônica de Vinicius, sobre o amigo lhe visitando em passarinho, a crônica de Lygia Fagundes Telles sobre a andorinha em que ela viu a amiga Clarice, “voando despassarada no meio da noite”, em seu quarto, num prenúncio da notícia fatídica e numa despedida. E já que chegamos a Clarice, não é que as cronistas da época estejam completamente obliteradas no cenário aí desenhado. Rachel de Queiroz e Eneida de Moraes são citadas por Carlinhos de Oliveira. Também Augusto Massi em seu prefácio menciona Rachel de Queiroz, Cecília Meireles e Clarice Lispector. Numa resenha recente sobre o livro, o crítico Álvaro Costa e Silva sugere mesmo uma antologia parelha, só com mulheres, aí lembrando o nome de outra cronista, com quarenta anos de jornal, Elsie Lessa. Mas não, não seriam elas “as sabiás da crônica”. É de se desconfiar também desses sabiás de cá. São mesmo todos sabiás? Não tem nenhum corvo ali? Nenhum periquito?

Mas façamos justiça às gravatas: que estilo tinham esses cronistas para o humor inteligente, o exercício da amizade, mesmo nas brigas, que não eram poucas nem mornas. E as curiosidades deliciosas nessas crônicas, por exemplo o testemunho de Paulo Mendes Campos, da madrugada que Murilo Rubião passou enchendo o lixo com os primeiros rascunhos do conto “O convidado”, o trote formidável de Otto Lara Resende no Vinicius ou Carlinhos Oliveira travestido no carnaval, na Ala das Piranhas.

Uma antologia de se ler lendo o ambiente de francas conversações literárias e artísticas daqueles tempos. A mulher? Está em tudo, inclusive na antológica foto de capa da patota. E está nua. Pelo menos o pano que lhe cai das ancas nem lhe cobre o sexo. Está nua e suspende com as duas mãos os cabelos num só feixe. E tem mais essa curiosidade, também no livro: Alfredo Ceschiatti, autor da escultura da foto, e Liliane Lacerda de Menezes foram os que cunharam a expressão “estar na fossa”. Isso aconteceu uma noite no bar e restaurante Zeppelin. Quem testemunha e registra o fato é Paulo Mendes Campos. Está lá, na crônica “Copacabana-Ipanemaleblon”, a mais longa do livro.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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