Distraída, demorei a dar foco ao que era um ruído de fundo, até que reconheci o choro de uma criança. Um menino. Já era tarde, talvez passasse da meia-noite, a avenida suficientemente silenciosa para fazer subir o eco de um protesto, que agora já era menos um choro que um grito.
Agora os gritos se sucedendo, caio em estado de alerta, até que outro grito se imbrica aos do menino num estrondo de voz-bofetada: “PARA!”. Bate a porta de um carro e, sem tempo nem ímpeto de chegar até a janela, já escuto o carro arrancar, agora só os pneus gritando.
Mais nenhum traço do choro do menino, metido naquele carro sob condução desvairada. Se ainda chora, chora encaixotado, atravessando a cidade a cem por hora, se é que já não entrou em fase avançada de assombro e trancou na garganta o seu soluço.
Nada mais daquela violência ao alcance dos meus ouvidos, mas algum mínimo fio ainda quero lançar na noite, à procura do menino, desejando-lhe um dom de mariposa, para que ele tenha o poder de se camuflar em pedra e passar incólume pelo horror de quem lhe meteu naquele carro.
Um dom de mariposa a esse menino, e a outras crianças que agora se encontram nas mãos dessa gente louca, que lhes grita, surrando com a voz antes do punho, e os humilha como não se humilha um bicho, essa gente perversa que se arroga o direito de fazer o que bem entende com uma criança, descarregando-lhe em cima as feras, as fúrias, os demônios de um surto.
Um dom de camuflagem a todos esses pequenos em apuros, que é para não alardear a intenção de fuga, enquanto não se lhes entreabre uma chance. Não fui o socorro do menino aquela noite, mas ele me deixou uma mancha do seu choro gritado, que eu ecoo aqui, desta janela de sábado, a quem puder escutar e servir de socorro, recuperando a chance que deixei passar.