Um episĂłdio da sĂ©rie Black Mirror me inspira a falar da realidade onde tenho vivido há alguns meses. A histĂłria fala de uma terapia revolucionária para idosos em uma clĂnica – um chip colocado na cabeça deles aciona o pensamento para que sejam lançados mentalmente em outro tempo – anos 60, 70, 80, 90 – em uma cidade fictĂcia. Eles vivem momentos de juventude que sĂŁo como uma espĂ©cie de recreio dentro da velhice. Achei perturbador, sobretudo quando percebi que talvez eu tenha implantado em mim um chip semelhante. Ando com dificuldade de viver onde de fato estou.
Há alguns meses, moro em mundos paralelos. NĂŁo precisa pensar muito para saber o motivo: a realidade está um massacre. As ruas andam estranhas e soturnas. A violĂŞncia cresce de uma forma inusitada e nĂŁo sĂł nos ambientes onde há misĂ©ria. Aquele parente, conhecido ou vizinho aparentemente bem de vida, que lhe parecia pacato, de repente vira um bicho e faz uma atrocidade. Exemplos nĂŁo faltam. Conheço uma menina, a princĂpio meiga e sorridente, que nĂŁo suportou o passarinho cantando cedo na janela e resolveu tacar-lhes sapatos. Vale a metáfora, claro.
Outro dia, vi na rua em plena luz do dia uma mãe dizendo ao filho pequeno que ia encher ele de porrada se ele deixasse a tampinha da garrafa de água mineral cair no chão. A avó estava do lado e repetiu a frase – “Vai tomar porrada”.
Acompanhei em pensamento aquela famĂlia, o menino silencioso, segurando a garrafa, com medo de beber para que a tampinha nĂŁo caĂsse. Imaginei uma histĂłria horrĂvel: ele deixando a tampa cair e, chegando em casa, a mĂŁe cumprindo a promessa. Bateu tanto no garoto que ele acaba nĂŁo suportando e morre. Escrevi esse texto e depois me dei conta do horror que tinha escrito. Mas, pensei, o escritor respira seu tempo, esse ar poluĂdo que respiramos, o mal-estar que tomou conta do paĂs, toda a decadĂŞncia da sociedade… As falas dos toscos estĂŁo mais toscas porque agora eles estĂŁo afinados no coro das bestas. Já perceberam como os toscos tĂŞm falado mais alto? Como atuam sem vergonha nenhuma para defender abomináveis argumentos contra o bom senso, a delicadeza e o afeto? Essa Ă© a realidade.
Apaguei o texto porque não consegui encarar o horror. Me recolho no meu mundo paralelo desesperadamente buscando uma série que me salve. Uma série após a outra, onde tenho vivido. Os livros também são ótimos escapes, mas a imagem neste momento me captura – o chip implantado, não quero tirá-lo. Criei uma distopia.
Acho que muitas pessoas vivem momentos semelhantes atualmente. É como se a ficção fosse uma espécie de espelho-buraco-da-Alice, onde se entra para viver amplitudes diversas e novos confrontos que, por mais bizarros, violentos ou inusitados, não são reais no sentido concreto do asfalto, grama, gente, pele. São mundos paralelos que sabemos não serem reais, como o sonho ou o pesadelo. Enquanto vivo dentro deste tempo suspenso, entre um intervalo e outro, imagino como voltar a colocar os pés, e o corpo inteiro, incluindo a mente, que também é corpo, de novo na realidade. Talvez eu nunca mais volte inteiramente da forma como vivia antes.
Existe a dĂşvida em nĂŁo ser capaz de fazer o momento inverso e sair de dentro do espelho-buraco-de-Alice. Mas como mudar a realidade se eu, assim como tantos que talvez se encontrem em posição parecida, continuar habitando os mundos paralelos? Os brutos dominarĂŁo para sempre? É preciso coragem para tirar o chip…