🔓 “Do grande silêncio vem-nos a verdade”

Revista espanhola "Licencia Poética" publica suas edições sobre o imprescidível tema “Povos em extinção, poesia perene”
Ilustração: Oliver Quinto
27/06/2022

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

Chegaram-me às mãos dois números preciosos de uma revista espanhola de poesia, Licencia Poética, da qual tomei conhecimento graças ao poeta José Manuel Suárez, seu diretor e de quem tenho a sorte de ser amigo: trata-se da edição de inverno de 2021 e da edição da primavera do corrente ano, ambas dedicadas à poesia dos povos em extinção, nomeadamente americanos (do norte e do sul) e da vasta região euroasiática. O título dos dois números é sugestivo: “Pueblos em extinción, perenne poesia” (I e II).

Os dois números da revista Licencia Poética a que me refiro reúnem textos de vários povos em extinção, mas também de outros cujas línguas, apesar de eles não correrem esse risco, digamos, físico, estão igualmente condenadas ou ameaçadas a desaparecer lentamente. De facto, não é somente a distribuição da riqueza que é injusta, esse desequilíbrio afeta igualmente as culturas e as línguas. Até onde sabemos, existirão no nosso planeta entre 6.500 e 6.900 línguas, mas 96% da população mundial apenas fala 4% desses idiomas, isto é, cerca de 270. Estima-se, a propósito, que em 2050 terão desaparecido da face da Terra 90% das línguas atuais.

A poesia oral desses povos (ou línguas) em vias de extinção é, como assinala José Manuel Suárez, “poesia tradicional, longínqua no tempo, pura vivência pessoal e social; vinculação à terra, ao fogo, à água, a tudo quanto está vivo. Na realidade, tudo está vivo e revive nesta poesia”. Suárez acrescenta que a poesia originária “está para além do literário ou, melhor dito, aquém, pois alheio a qualquer intencionalidade de construção literária. Sendo, de qualquer forma, plenamente literário, não intenta sê-lo”.

Acrescenta o diretor de Licencia Poética: “Esta poesia atinge a grandeza porque não a pretende; não é original, mas originária; não proclama a verdade, está na verdade”. O poeta espanhol defende ser necessário “limpar a mente de tantas ideias feitas que moldam a nossa consciência do que é valioso”, para, assim, poder apreciar devidamente esta poesia tradicional ou originária. Curiosamente, ele parece responder ao romancista brasileiro Milton Hatoum, o qual, ao comentar o livro Rio sem margem, do poeta angolano Zetho Gonçalves, baseado na poesia tradicional angolana e africana, observou: – “Só por preconceito ou incompreensão a literatura oral é menos lida e estudada que a literatura escrita” (ver aqui a minha coluna da semana passada).

O primeiro número destas duas edições de Licencia Poética sobre a poesia dos povos em vias de extinção (inverno de 2021), dedicado à poesia dos povos originários das américas, inclui uma ampla recolha, acompanhada de anotações críticas, feitas pelo médico e poeta argentino Robert R. Rivas, que também traduziu os textos. Segundo ele, o trabalho de seleção e tradução para o castelhano da oratura dos povos da América do Norte foi mais fácil do que o mesmo trabalho feito com as produções dos povos da América Central e do Sul, pois, no primeiro caso, existe uma abundante bibliografia em inglês, enquanto, no segundo, quase não existem registos; por isso, Rivas converteu-se ele próprio no tradutor da poesia oral dos povos centro e sul-americanos originários.

Robert R. Rivas destaca as lições que os povos originários, também chamados, por puro preconceito, “primitivos”, dão a todos os supostos “civilizados”, muitas das quais podem (e, em alguns casos, foram!) ser encontradas nas poéticas tradicionais americanas (mitos, canções, discursos e várias outras formas expressivas).

Como exemplos, o poeta argentino afirma que Michel de Montaigne (1533-1592) foi influenciado pela oratura dos índios da América, o que levou Shakespeare a usar alguns dos seus comentários em A tempestade, no discurso de Gonzalo acerca da comunidade ideal; Jean Jacques Rousseau, por seu turno, utilizou as informações do missionário Jean Baptiste Dutetre nos seus comentários revolucionários; por fim, a obra Liga dos Iroqueses, do antropólogo Lewis Henry Morgan (1818-1881), influenciou profundamente Marx e Engels, na sua visão do que seria uma sociedade socialista no futuro.

Leia-se esta Oração Tradicional:

Quando morrerem as montanhas, nós morreremos.
Quando os rios correrem para trás no tempo,
Os nossos espíritos irão com eles.
Dentro de nós, tudo é um círculo.
O que termina aqui
Começou em algum outro lugar.
O que aqui começa não tem fim.

A segunda edição da revista Licencia Poética sobre poesias originárias (primavera de 2022) é sobre os povos e línguas euroasiáticas. Assim, foram transcritos poemas e canções dos povos (incluindo, especificamente, esquimós, voguls, yukagir, mansii, buriata, tártaros e kirguises) do Alasca, Gronelândia, Sibéria, Mongólia, Afeganistão, Malásia, Cambodja e Azerbaijão.

Entre os vários textos, destaco este Canto de uma mulher acerca dos homens, de origem esquimó, um explícito poema feminista avant la lettre:

Primeiro baixei a cabeça,
Olhando para o solo,
Por um segundo não disse nada.
Mas agora que se foram,
Posso responder,
Erguendo a minha cabeça e
Olhando com firmeza para a frente.
Dizem que roubei um homem,
O marido de uma das minhas tias,
Dizem que fiz dele o meu próprio marido.
Mentiras, contos de fadas, difamações.
Foi ele que veio, acostando-se a meu lado.
Mas eles são homens e mentem.
Esta é a razão, a minha triste sorte.

Rivas diz que vários autores já demonstraram que não existe nenhum fosse entre o pensamento dos povos considerados “primitivos” e os homens modernos. Para ele, “a vida tribal produz uma relação extraordinária com a natureza e (…) a condição humana”. Assim, explica: – “A minha fascinação pelos cantos, orações e relatos dos povos originários tem a ver justamente com a originalidade que os mesmos mantêm.

O poeta argentino cita Benjamin Lee Whorf: “Em muitas línguas ameríndias e africanas abundam distinções finamente elaboradas e lógicas, matizes para expressar causa, ação, resultado, qualidade dinâmica ou energética, natureza imediatista da experiência, etc., todas elas facetas da função conceitual e que, na realidade, constituem a quintessência do racional. Desse ponto de vista, superam em muito as línguas europeias”.

O diretor de Licencia Poética, José Manuel Suárez, observa que o contraste entre a poesia originária e aquela que é publicada presentemente “assusta”. Explica ele: “A poesia dos povos em vias de extinção é primitiva, não no sentido habitual da expressão, mas num sentido nobre, limpo, quase inocente. (…) Não há utilidade nem cálculo, apenas entrega a uma realidade cujo fundamento último é o ´cantor´, pelo que o poeta apenas pode intuir, obscuramente. A vida, a natureza, os animais com os quais convive, o próprio sofrimento e tudo o que, afinal, se mantém de pé (existe), tudo para esta poesia é um mistério insondável e ao mesmo tempo de uma extrema transparência”.

Para a poesia originária, a melhor forma de expressar essa realidade, segundo Suárez, é simplesmente “estar”. Oferenda, doação e gratidão, esse estado é de um “luminoso lirismo”, como se pode apreciar nos versos seguintes:

Só uma coisa vale a pena:
Viver para da tenda apreciar
O grande dia que amanhece
E a luz que inunda o mundo

“A poesia dos povos e culturas em extinção é silêncio. Mas do grande silêncio vem-nos a verdade”, conclui José Manuel Suárez.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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