Vinha de muito longe aquele som. Passou no meio da tarde, faz alguns dias. Eu o vi pela janela da cozinha. Era o amolador de facas. Ele tocava sua flauta de pĂŁ, e assim ia, pela rua, comunicando seu caminho no desdobrar daquele piado antigo.
Tinha qualquer coisa ali que cheirava a realidade extinta. Mas nĂŁo era o homem passando em carne e osso, nem exatamente sua profissĂŁo anacrĂ´nica nem exatamente sua flauta primitiva. Era o bairro em torno do homem. Talvez toda a cidade.
Porque o amolador de facas vinha como se na mesma toada desde sempre e para sempre. Como um pássaro descrido atravessando nossa hora útil rumo a novos primórdios. Ele e seu canto ambulante, resistente a apocalipses.
As Ăşltimas velhas casas do bairro já começam a desabar, cairĂŁo outras, cairĂŁo todas, ficarĂŁo mais tristes nossos mastodontes de sombra e vidro, circularĂŁo novos vĂrus acordados das florestas desmatadas e do gelo profundo tornado água sinistra, desvirginaremos novos medos inimagináveis, perderemos a noção de calendário, e aquele homem, aquele mesmo homem, continuará ali, passando, estranhamente em paz, por alguma rua ainda povoada de ouvidos.
Por que nĂŁo? O das lâminas redivivas, com sua flauta de pĂŁ, como um homem necessário. Como um homem do futuro, que passa, e segue passando, atravessando nossa hora daqui para adiante, sempre adiante. Um pássaro que ainda causará de novo em alguĂ©m um arrepio. Nosso pássaro de amanhĂŁ, com canto de flauta e asas de esmeril. Por que nĂŁo? Mesmo que dure o tempo de um cafĂ© esse delĂrio. Mesmo que sejam sĂł cinco minutos em faz-de-conta de profecia subindo da rua atĂ© a janela da cozinha.