Nos tempos em que estamos vivendo, os maiores pavores, além dos que chegam a todo momento sobre atualização do número de mortos e incompetência governamental para lidar com a pandemia, são as eventuais mutações do vírus. Ainda que o receio se justifique pela possibilidade de ele se tornar mais letal ou contagioso, parece que quase sempre essas alterações são normais.
Se até os vírus, elementos tão simples, modificam-se o tempo todo para sobreviver, por que tantos de nós resistimos a mudanças?
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Posso usar essa premissa não como um debate sobre o comportamento humano, mas de pronto tenho uma resposta: porque cansa.
Se contei bem, por esses dias participei da 21ª mudança ao longo da vida. A cada vez, os móveis arranham mais. A cada vez, o frete parece mais caro. A cada vez, transportar livros se torna, literalmente, um fardo quase insuportável.
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“Todo o mundo é composto de mudança/ Tomando sempre novas qualidades”, foi o que disse Camões naquele famoso soneto. Mas aí me lembro também do trecho de um poema político do Affonso Romano de Sant’Anna, acredito que do início dos anos 1990, chamado Carta aos mortos:
Amigos, nada
mudou
em essência.
Os salários
mal dão para os gastos,
as guerras não terminaram
e há vírus novos e terríveis,
embora o avanço da medicina.
Além de atualíssimo, o poema encerra com um tapa numa das grandes doenças contemporâneas, que é a anacronia, cujo sintoma é acreditar que o agora é algo como o umbigo dos tempos: “E cada geração, insolente,/ Continua a achar/ Que vive no ápice da história”.
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Até há não muito tempo, os únicos mutantes que nos interessavam eram o grupo da Rita Lee e os X-Men. E mesmo esses últimos parecem claudicar, apesar de todo o investimento da indústria cinematográfica. Os novos mutantes é um filme horroroso. Fiquemos então com a banda de rock. Ouvir Ando meio desligado parece um bom recado para hoje.
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No Rio de Janeiro existe o bairro da Muda, localizado na Zona Norte, mais precisamente como se fosse uma ilha dentro de outro bairro, a Tijuca. Consta que, naquele local, os cavalos e burros que puxavam os bondes eram substituídos por outros descansados.
Muda é, também, um sinônimo de broto. Veio-me agora a lembrança das minhas tias dizendo sempre “vou levar uma muda dessa plantinha, tá?”, enquanto, suavemente, arrancavam um galhinho de roseiras ou margaridas.
Voltando rapidamente para hoje (o pensamento é a grande máquina do tempo), o termo broto, sinônimo de jovem bonito/a que vigorou pelos anos 1960 e 1970, acaba de voltar com toda força na fala da galera do funk: “brota no bailão/ pro desespero do seu ex”. O interessante é notar como as temáticas lírico-amorosas quase sempre acompanham (ou são responsáveis por) as mudanças da linguagem.
(Faço uma anotação para futura crônica, sobre o assunto, intitulada Beijo de língua.)
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Os livros impressos mostram seu peso para a cultura, sobretudo quando nos mudamos. É impossível carregar muitos volumes por vez, de modo que transportá-los não deixa de parecer um trabalho de Sísifo. Até que, suando em chafariz e já pensando no anti-inflamatório enquanto arrumamos a nova estante, algum parente chega e pergunta: “Me diz uma coisa, disso tudo aí quanto que você já leu?”.
Uma das caixas abriu quando já chegava ao novo endereço, espalhando ótimos volumes por todo o chão, numa rápida imagem inicialmente lúdica mas logo microtrágica: as 200 crônicas escolhidas do Rubem Braga caíram sobre o meu dedão. Num exercício de resiliência, sem nem precisar de coach, pensei: “pelo menos tenho um título para a próxima crônica”.
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“A única coisa constante na vida é a mudança”, disse Heráclito de Éfeso. Se eu tivesse uma empresa de fretes ela se chamaria Heráclito Transportes, com essa citação estampada bem grande ao lado dos caminhões.
E no para-choque pré-socrático: “Você está mudando agora, sabia?”.