🔓 Cozinhar para não enlouquecer

A felicidade derivada da gratidão por poder escolher o que comer num país de tantos pratos vazios
12/05/2021

Se eu cozinhasse bem, não estaria escrevendo essa crônica. Toda a minha família vive da culinária. Meu pai é dono de um dos maiores restaurantes do mundo. Minha mãe tem uma cantina. Meu irmão é um chef conhecido. Minha prima tem um bufê. Minha outra prima, uma padaria. Cresci entre as panelas e os parreirais, de onde colhíamos uvas para fazer vinho. Acompanhei por anos a minha nona fazendo massa, a minha mãe preparando codornas ou ossobuco para um trivial almoço de segunda. Poderia ter saído dessa experiência enrolada num Cordon Bleu mas, vinte anos depois, saí de casa para morar sozinha sabendo fritar apenas um ovo – e errado: até hoje minha mãe me lembra que o sal deve ser colocado depois de a gema já frita.

Cá entre nós: é preciso muito talento para absorver tão pouco conhecimento, mesmo quando a vida serve-o de bandeja, em três refeições diárias. O que eu fazia para não aprender tanto? Lia enquanto todos cozinhavam. A minha lembrança mais feliz da adolescência é ler na varanda da praia, sentindo o cheiro de camarão que vinha da cozinha.

Só que o tempo maturou, um ovo cresceu na minha barriga e, depois de chocá-lo e botá-lo no mundo, percebi que se continuasse vivendo de delivery e miojo, estaríamos fritos. Como já estava longe das minhas raízes, morando em São Paulo, fui buscar conhecimento onde sempre o encontrei: nos livros.

Gostava de sentar ao sol com um compêndio de cozinha mediterrânea, lendo sobre o cultivo de alimentos na Sicília. Na hora de cozinhar, pegava a receita mais curta, sempre deixando para depois o Ulisses dos recheados ou o interminável Soneto do boeuf bourguignon.

Depois de anos lendo muitos livros de receita e fazendo quase nenhuma, eu sabia preparar três pratos, com uma assinatura só minha: quando ficavam gostosos, ficavam feios. Quando apresentáveis, eram péssimos de sabor.

Sou grata ao estômago dos meus amigos. Ao ser convidado para jantar na minha casa, um deles sempre dizia: fica tranquila que, se der errado, pedimos pizza. Hoje, percebo que o vinho que ele trazia já era pensado para harmonizar com a calabresa ou a marguerita.

E, então, a pandemia. Não sei se isso realmente aconteceu ou foi fruto da minha incontinência mental mas, quando debruçada sobre uma sopa de letras feita com caldo knorr e enlatados, vi os caracteres se juntando para dizer: chega.

Desde então venho cozinhando com afinco. Todos os dias, às onze da manhã, largo o que estiver fazendo e ponho o avental. Leio os sonetos de fogão até o fim. Ligo para a minha mãe pedindo áudios: e aquela que a nona fazia? Descobri que a máxima “para fazer qualquer coisa bem é preciso tantas horas de prática” procede. Sigo sendo a mesma, derrubando coisas e queimando as mãos, mas já sei preparar pratos que minha filha implora para comer de novo. Uma pena que meus amigos não tenham vindo aqui. Eles adorariam não comer pizza. Até minha mãe deu o braço a torcer, incapaz de me espetar com o palito: a minha bracciola ficou mais gostosa do que a dela.

Mas o melhor de tudo não está na ponta do garfo. Ou não apenas. Se a escrita me leva para o céu e as notícias para o inferno, o fogo me devolve para o chão. O medo de adoecer não cabe entre os movimentos rápidos da faca. A ameaça de fascismo não é mais urgente que o molho prestes a desandar.

E as cebolas, ah, as cebolas. Às vezes, chego até a pôr uma música. A cisteína das camadas sobe até os meus olhos provocando o choro represado pela armadura que forjei para atravessar esses tempos. De alma e cara lavada, sento para comer com as pessoas que amo. Cansados de nós mesmos todos os dias, encontramos assunto no que pode ser feito para a berinjela não amargar e as batatas ficarem mais crocantes.

Claro que engordei alguns quilos. Minha barriga estoura os botões de calça como fogos de artifício, numa felicidade derivada da gratidão por poder escolher o que comer num país de tantos pratos vazios.

Se está difícil pensar no amanhã, tento focar no dia seguinte:

500g de cogumelos
½ cebola ralada
1 taça de vinho branco
Sal
Alecrim

É a herança que recebi da minha família. Que bom que estou usando a tempo e em boa hora.

Giovana Madalosso

Nasceu em Curitiba (PR), em 1975. É autora de A teta racional (livro de contos finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional), e dos romances Tudo pode ser roubado (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura) e Suíte Tóquio.

Rascunho