Se eu cozinhasse bem, nĂŁo estaria escrevendo essa crĂ´nica. Toda a minha famĂlia vive da culinária. Meu pai Ă© dono de um dos maiores restaurantes do mundo. Minha mĂŁe tem uma cantina. Meu irmĂŁo Ă© um chef conhecido. Minha prima tem um bufĂŞ. Minha outra prima, uma padaria. Cresci entre as panelas e os parreirais, de onde colhĂamos uvas para fazer vinho. Acompanhei por anos a minha nona fazendo massa, a minha mĂŁe preparando codornas ou ossobuco para um trivial almoço de segunda. Poderia ter saĂdo dessa experiĂŞncia enrolada num Cordon Bleu mas, vinte anos depois, saĂ de casa para morar sozinha sabendo fritar apenas um ovo – e errado: atĂ© hoje minha mĂŁe me lembra que o sal deve ser colocado depois de a gema já frita.
Cá entre nós: é preciso muito talento para absorver tão pouco conhecimento, mesmo quando a vida serve-o de bandeja, em três refeições diárias. O que eu fazia para não aprender tanto? Lia enquanto todos cozinhavam. A minha lembrança mais feliz da adolescência é ler na varanda da praia, sentindo o cheiro de camarão que vinha da cozinha.
SĂł que o tempo maturou, um ovo cresceu na minha barriga e, depois de chocá-lo e botá-lo no mundo, percebi que se continuasse vivendo de delivery e miojo, estarĂamos fritos. Como já estava longe das minhas raĂzes, morando em SĂŁo Paulo, fui buscar conhecimento onde sempre o encontrei: nos livros.
Gostava de sentar ao sol com um compĂŞndio de cozinha mediterrânea, lendo sobre o cultivo de alimentos na SicĂlia. Na hora de cozinhar, pegava a receita mais curta, sempre deixando para depois o Ulisses dos recheados ou o interminável Soneto do boeuf bourguignon.
Depois de anos lendo muitos livros de receita e fazendo quase nenhuma, eu sabia preparar três pratos, com uma assinatura só minha: quando ficavam gostosos, ficavam feios. Quando apresentáveis, eram péssimos de sabor.
Sou grata ao estômago dos meus amigos. Ao ser convidado para jantar na minha casa, um deles sempre dizia: fica tranquila que, se der errado, pedimos pizza. Hoje, percebo que o vinho que ele trazia já era pensado para harmonizar com a calabresa ou a marguerita.
E, então, a pandemia. Não sei se isso realmente aconteceu ou foi fruto da minha incontinência mental mas, quando debruçada sobre uma sopa de letras feita com caldo knorr e enlatados, vi os caracteres se juntando para dizer: chega.
Desde então venho cozinhando com afinco. Todos os dias, às onze da manhã, largo o que estiver fazendo e ponho o avental. Leio os sonetos de fogão até o fim. Ligo para a minha mãe pedindo áudios: e aquela que a nona fazia? Descobri que a máxima “para fazer qualquer coisa bem é preciso tantas horas de prática” procede. Sigo sendo a mesma, derrubando coisas e queimando as mãos, mas já sei preparar pratos que minha filha implora para comer de novo. Uma pena que meus amigos não tenham vindo aqui. Eles adorariam não comer pizza. Até minha mãe deu o braço a torcer, incapaz de me espetar com o palito: a minha bracciola ficou mais gostosa do que a dela.
Mas o melhor de tudo nĂŁo está na ponta do garfo. Ou nĂŁo apenas. Se a escrita me leva para o cĂ©u e as notĂcias para o inferno, o fogo me devolve para o chĂŁo. O medo de adoecer nĂŁo cabe entre os movimentos rápidos da faca. A ameaça de fascismo nĂŁo Ă© mais urgente que o molho prestes a desandar.
E as cebolas, ah, as cebolas. Ă€s vezes, chego atĂ© a pĂ´r uma mĂşsica. A cisteĂna das camadas sobe atĂ© os meus olhos provocando o choro represado pela armadura que forjei para atravessar esses tempos. De alma e cara lavada, sento para comer com as pessoas que amo. Cansados de nĂłs mesmos todos os dias, encontramos assunto no que pode ser feito para a berinjela nĂŁo amargar e as batatas ficarem mais crocantes.
Claro que engordei alguns quilos. Minha barriga estoura os botões de calça como fogos de artifĂcio, numa felicidade derivada da gratidĂŁo por poder escolher o que comer num paĂs de tantos pratos vazios.
Se está difĂcil pensar no amanhĂŁ, tento focar no dia seguinte:
500g de cogumelos
½ cebola ralada
1 taça de vinho branco
Sal
Alecrim
É a herança que recebi da minha famĂlia. Que bom que estou usando a tempo e em boa hora.