🔓 Como nasce uma vocação?

As muitas histórias e fitas cassetes que levaram a cronista a seguir o desejo de ser escritora
Ilustração: Thiago Lucas
02/10/2022

Eu ainda não sabia escrever, mas sabia, por algum misterioso motivo inacessível a mim mesma, que gostaria de me expressar com palavras. Mas talvez eu não seguisse este caminho das palavras não fosse alguém observando em que direção ia minha incipiente vocação. Eu não sabia escrever e falava um vocabulário cheio de erros infantis quando meu pai criou um programa de rádio e, juntos, todas as manhãs de domingo, a gente falava sobre assuntos diversos e ele gravava e nomeava o que fazíamos de “programa de rádio”.

Todas as pessoas que chegavam a minha casa tinham que ser entrevistadas. Oferecia um café com leite frio, pois ainda não sabia ligar o fogo, sentava a vítima no sofá de napa azul da sala e começava as perguntas. Eu queria saber a história de todas as pessoas. Aquela inadequação infantil não era vista com maus olhos nem recriminada; pelo contrário: meus pais riam e gostavam. Eu me sentia, então, motivada a seguir buscando conhecer a histórias de todas as pessoas.

Quando aprendi a escrever, tudo o que eu via ou sentia tinha que ser registrado. O diário não falava apenas de mim, mas das situações que me rodeavam. Me lembro de um “personagem” que chamava a minha atenção na porta da escola — o pipoqueiro. Eu escrevi sobre ele, porque me dava muita pena vê-lo arrastando aquela sua pequena fábrica ladeira acima — o colégio ficava no alto da rua.

Acredito em vocação. Acho que as pessoas nascem predispostas a seguir um caminho e a declinar outros. Mas a vocação não persiste sem que haja na infância olhos observadores para impulsionar as primeiras escolhas. Todas as noites, quando meu pai chegava do trabalho, reservava alguns minutos para que a gente conversasse sobre algum livro. Eu não nasci amando ler, de forma alguma. Foi um hábito cultivado dia a dia, noite a noite. Nem sempre eu gostava dos livros que ele escolhia, mas era bom dividir com ele as histórias e saber que eu tinha na minha casa mãos que me conduziam para onde eu queria estar — no mundo das palavras.

A vocação precisa ser estimulada. Este estímulo vai criar memórias eternas. Hoje eu preciso achar onde estavam aquelas fitas cassetes (sou dessa época) e me reencontrar no tempo do rádio…

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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