🔓 Clarice ainda, e sempre

Em Clarice Lispector, até um erro nos leva para o mistério da língua. Mesmo que seja da língua presa
Clarice Lispector, autora de “Água viva”
12/12/2020

(12/12/20)

Anteontem foi comemorado o centenário de Clarice Lispector. Espero que o assunto ainda renda algum interesse de leitura hoje. Não que a autora de A hora da estrela seja um tópico eventual de conversa, visto que se trata de uma escritora clássica e, inclusive, campeã daquelas frases apócrifas e poemas que nunca escreveu. Mas é que parece, nos tempos de leitura internética, que todo mundo só consegue falar de um mesmo assunto, rapidamente trocado por outro.

Desse modo, torço para que a efeméride ainda seja assunto quente, não tendo sido substituída por qualquer polêmica do presidente ou pelos inevitáveis festejos natalinos.

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Participei da leitura conjunta de Felicidade clandestina, em que diversos colegas de trabalho de todo o país costuraram esse conto, numa salada de sotaques maravilhosa. Vendo o resultado, que pulava de uma frase capixaba para uma sul-mato-grossense, seguida por uma gaúcha, me lembrei do próprio jeito de falar clariceano.

Como ela era ucraniana, morou em Recife e veio para o Rio de Janeiro, acreditavam que sua forma peculiar de pronunciar as palavras era o resultado dessas travessias, quando o maior responsável era um problema de dicção. Em Clarice, até um erro nos leva para o mistério da língua. Mesmo que seja da língua presa.

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Pelo que me lembro, o primeiro texto que li da autora foi uma crônica, provavelmente na saudosa biblioteca do Ciep, na querida coleção Para gostar de ler. Se não foi, porque acredito ter sido em meio à penumbra da memória, passa a ser, o que não faz a menor diferença para ninguém.

O fato é que de todas as crônicas ficou uma sobre a solidão, que reli durante muitos anos e, como todos os bons textos, vão nos dizendo coisas diferentes. Puxando a brasa para a sardinha dos colegas colaboradores do Rascunho nesta seção, a leitura de crônicas deve ser muito estimulada, podendo ser uma grande porta de entrada para os clássicos.

Um adolescente pode estranhar muito ou não encontrar nada em Dom Casmurro, mas pode chegar a Machado com algumas das crônicas que ele escreveu por 50 anos. Pode capotar nas primeiras páginas de Água viva, mas dificilmente rejeitaria a crônica sobre a solidão, que é o grande sentimento da adolescência, vale lembrar. Vale me lembrar…

E Água viva, que descobri mais tarde, se tornou um dos meus 10 livros preferidos da vida inteira.

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Curto muito as cartas de Clarice. Acho que o volume Cartas perto do coração, trocadas com Fernando Sabino, é um dos livros mais bacanas dessa categoria. Como disse aqui outro dia, gostei tanto que, empolgado, emprestei o meu exemplar, que jamais foi devolvido – e espero que esteja ainda circulando entre outros leitores.

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Assisti por esses dias a uma entrevista do Sabino no Roda Viva, de 1989. Com o luxo de ter, entre os perguntadores, Caio Fernando Abreu. Quando tratou sobre o motivo pelo qual a crônica vinha perdendo prestígio nos jornais, o mineiro disse algo que antecipou muito os nossos tempos: “Comunica-se mais do que se exprime!”.

É impossível não pensar no que se tornou a nossa realidade, em que todos se comunicam durante todo o tempo, escravos da urgência nas nossas pequenas telas portáteis, enquanto simultaneamente temos a impressão de alimentar uma imensa máquina de vazio.

Talvez tenhamos que reinventar a antiga disciplina “Comunicação e expressão”, para aprender a diferenciar uma da outra, valorizando devidamente esta última.

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Participei de um podcast em que deveria responder por que amamos Clarice. Como acho dificílimo explicar qualquer amor, enrolei na resposta, como tenho a sensação de enrolar nestas crônicas quinzenais. Mas depois pensei que essa autora difícil e acessível encante tantas pessoas porque nos resgata esse sentimento que parece se perder nesse fim de década: expressar-se e ser expressado.

Henrique Rodrigues

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e trabalha na gestão de projetos de incentivo à leitura. É autor de 15 livros, entre romance, poesia, infantis e juvenis. Site: www.henriquerodrigues.net.

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