Conto os dias para ir a uma festa de novo. NĂŁo deve ser tĂŁo cedo. As que rolam durante a pandemia sĂŁo tristĂssimas, verdadeiras nĂŁo-festas, onde a essĂŞncia da celebração se perde entre os umbigos espaçosos dos egoĂstas.
Quero festa de verdade, daquelas que celebram a vida do lado de dentro e de fora. Pode ser para comemorar aniversário, puberdade, casamento, corte de prepúcio, dia de santo, bodas de ouro ou algodão, inauguração de obelisco na cidade, colheita da uva.
Foi assim que comecei minha carreira na boemia, sentada no colo de Baco, na Festa da Uva do bairro onde nasci. Segundo meu pai, quando criaram a festa, o objetivo nem era festejar a abundância de cachos, mas dar um pretexto para os jovens se conhecerem, flerte incentivado pela venda de rifas, quando moças e rapazes podiam conversar e contar centavos sem a presença de outros. Já adulta participei de um Mariri indĂgena que nĂŁo tinha rifa mas botava adolescentes numa roda e convidava os garotos a carregarem nas costas uma garota escolhida, para ver se aguentavam o tranco. Nessa festa tambĂ©m assisti a uma brincadeira maravilhosa, em que desafetos podiam bater com suavidade – e com a mediação e anuĂŞncia da comunidade – um no outro, de forma a zerar suas rusgas.
E o que dizer da exuberância kitsch das festas de quinze anos? Fui a uma em que o irmĂŁo mais novo da donzela (socorro, Simone de Beauvoir) vestia-se de prĂncipe e levava para ela um sapato de salto, que ela colocava em pĂşblico, simbolizando sua entrada na vida adulta. Depois, amigos acasalantes dançavam em torno da moça, enquanto os pais assistiam, deslizando a mĂŁo na perna do cĂ´njuge ou cĂ´njuge de outra pessoa por baixo da mesa.
NĂŁo vejo problema em perder o controle. Aliás, acho esse o maior benefĂcio da festa: criar um ambiente propĂcio para a perda de controle. VocĂŞ bebe mais do que deve, fala o que nĂŁo deve, olha para quem nĂŁo deve – e agora eu pergunto, quem Ă© o problema: vocĂŞ ou o deve? Claro que o deve, esse opressor em forma de verbo. Livrar-se do deve de vez em quando Ă© tĂŁo saudável que vocĂŞ pode invadir a pista e dançar como uma libĂ©lula reumática, ser inconveniente com os amigos, vomitar no banheiro e, mesmo assim, um dia lembrará do evento com um sorriso.
Em que outro ambiente um ser humano pode olhar nos olhos de um completo desconhecido e dizer: you can ring my bell? E não contente com isso, balançar os quadris, descer a mão pelo corpo e ainda repetir: my bell, my bell, my bell? Certamente não numa reunião de balanço de empresa. A não ser que esse balanço seja o samba-rock, depois do expediente.
Até de festa estranha com gente esquisita eu gosto. Uma vez fui a um encontro ao ar livre em Lisboa, em que cada um deveria levar seus fones e dançar a própria música. As condições não inspiravam muita interação. Fiquei sozinha ruminando meu Daft Punk e olhando o horizonte melancólico da cidade, sem conversar com ninguém. Mesmo assim fui embora satisfeita, banhada na força revigorante do absurdo.
Do carnaval nem vou falar porque molharia o teclado. Opa, acho que já estou molhando o teclado, e tudo bem, como é bom chorar em tempos tão duros. E lembrar, como faço agora, da festa que transforma até túmulo em berço. Sim, eu vi o samba renascer em São Paulo, os postes virarem coqueiros, o cinza e as cinzas do centro virarem purpurina. Como gosto de caminhar de ressaca na quarta-feira e topar com os restos insólitos da folia: tridente e chapéu de marinheiro no lixo, no galho de uma árvore, serpentina.
Pela primeira vez, nesse ano-novo não tive festa. Jantamos apenas eu, meu companheiro, minha filha e meus enteados, no apartamento de uma cidade triste e vazia, onde não se ouvia nem rojão. Íamos ver um filme mas lá pelas tantas alguém pôs uma música. Não sei quem afastou os móveis, não sei quem trouxe o pinheirinho piscante para o canto da pista, só sei que de repente estávamos todos pogando ao som de Blister in the sun, e chutando o ano-velho, e cotovelando a pandemia, e cantando até as duas da manhã.