🔓 Atlântico

Eu te amo sempre, no teu verde translúcido com arraias e tartarugas, na tua fúria alta e branca de espuma, no teu negrume ensimesmado que não é petróleo
19/12/2020

Já estivemos mais próximos, fisicamente misturados. Eu ouvia Leonard Cohen numa fita cassete enquanto te adivinhava no breu da noite dupla, como são duplas as noites dos mares e das matas. Era um desejo desacautelado de estar junto, mesmo que teu repuxo me levasse para longe demais da costa. Se rareava esse estar junto, eu simulava nosso elo lendo Hemingway, Joseph Conrad, Marguerite Duras.

Estive uma vez onde tua temperatura chamava os tubarões e nem fui à praia. Vi um assédio de navios que se acendiam à noite na linha do horizonte formando um cordão branco-amarelado e, também à noite, um pescador e seu barquinho quase fundidos no teu corpo como um antigo caso de amor selvagem.

Quantos já envelheceram na tua frente, como eu. Quantos já te procuraram para começar ou terminar algo importante. Te encheram de palavras, lamentos, pedidos, miragens. Uma louca de lucidez chamada Estamira uma vez travou contigo uma impressionante contenda animal que foi filmada. Agora é minha filha que te ama e diz que te ama porque é uma carangueja. Eu te amo também, eu te amo sempre, no teu verde translúcido com arraias e tartarugas, na tua fúria alta e branca de espuma, no teu negrume ensimesmado que não é petróleo.

Para resgatar aquele elo, se não te vejo, hoje leio Sophia. Mas se te vejo, se te escuto, não existe aí outra forma muito peculiar de mistura? Essa maresia pegada à pele, que sem alarde vai corroendo gigantescas estruturas, entra em mim e não corrói como faz aos edifícios, mas me organiza, me sereniza, põe ritmo nas minhas saudades. Quando viajo para te ver, agora, é para isto realmente que viajo, não mais que isto, para te ver, para te escutar, deixar que teu vaivém me leve a trabalhar sentimentos antes quase estagnados. Então será mesmo verdade que já estivemos mais próximos? Ou agora é apenas uma nova intimidade nossa?

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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