🔓 Aprender a não esquecer

O exercício constante de lembrar pode ser um caminho importante para que não se esqueça o que nos define
Ilustração: Oliver Quinto
03/10/2021

Uma vez fiquei surpresa ao ver um post de uma conhecida no Facebook que se dizia profundamente aborrecida pelo fato de que a todo o instante ela era convocada a se lembrar do CPF. Estava realmente irritada. O pensamento imediato que me veio diante daquele post foi o de estranhamento, já que eu sempre me sinto aliviada quando consigo me lembrar dos números que me definem. Costumo me colocar à prova e insisto em não recorrer a anotações. Quero guardar o que prova a minha existência.

Aí pensei o contrário. Começar a se esquecer dos números, nomes, coisas, fatos, pessoas é uma experiência de desaparecimento lento. É como naquele filme em que os retratos de quem fomos começam a se apagar. E com mais força me apeguei aos números que me definem e que eu reconheço como sendo meus, só meus.

Já pensaram que este caminho – o esquecimento – muitas vezes é pedido para nós ao longo da vida? Não só por amigos, parentes, mas por nós mesmos? Quantos já ouviram a velha e conhecida sentença – esquece isso! – nos momentos de dor, revolta, mágoa, rancor, ódio etc., em que somos convocados a esquecer o que nos fez mal?

O processo é demorado, mas nos esforçamos para “esquecer” o que não queremos nos lembrar porque nos maltrata. Jogamos para debaixo do tapete da memória vários conteúdos que não queremos reconhecer como nosso e, ao longo do tempo, acabamos estranhando aquilo que rejeitamos. Perdemos um pouco do que nos definiu por não suportar o peso da lembrança indigesta.

Criamos o mecanismo de esquecimento, uma engrenagem. Ligamos a máquina engolidora dos acontecimentos e sentimentos indesejados como se fosse uma espécie de anestésico. Silenciamos aquele conteúdo e tentamos seguir em frente na vivência de coisas melhores. Só que a vida é tudo junto: alegria e tristeza, aleluia e rancor. Em um momento da vida, talvez o mesmo, tenhamos tido uma experiência ruim, mas, naquele instante, algo cintilante e mínimo pode ter acontecimento ou ameaçado acontecer, mas nos esquecemos, pois atamos em molhos as cenas do momento integral e aí… já era!

Eu pelo menos funciono assim: quando não suporto me lembrar de algo que me fez sofrer, simplesmente jogo pessoas e fatos para um calabouço. Mas tenho refletido se essa é a melhor estratégia. Quem sabe não seria melhor aprender a me lembrar do que me fez mal e tentar deixar o sentimento dolorido planar na memória sem que me atrapalhe viver? É um equilíbrio difícil… Quase por reflexo não aceito a lembrança e prefiro atirá-la no tal calabouço sem chance de retorno.

A vantagem disso é que sou capaz de deixar espaço livre para as novidades, já que me livro do peso dos passados desagradáveis. Só que é preciso ter cuidado, pois muitas vezes o mecanismo do esquecimento é automático e eficaz demais. Quantas vezes encontrei pessoas que não via há séculos e fiquei chateada por não me lembrar de episódios vividos e que foram bons? O calabouço engolidor…

Talvez seja preciso aprender, sim, a convocar de volta à superfície um pouco do que joguei na escuridão dos oceanos turvos da memória para não esquecer totalmente partes inteiras do que eu um dia fui. Aprender a lembrar pode ser um caminho importante para que a gente não se esqueça do que nos define – para além dos números e dos CPFs.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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