🔓 Amar e desamar uma cidade

Talvez escrever um livro para um amante seja o canto do cisne. Só aprisionamos em uma obra aquilo que já não existe mais
23/12/2020

Fui flechada em 1999. A paixão não foi cega. Na época eu já enxergava seus defeitos. São Paulo era feia, caótica, pálida. Nada que me importasse naquele momento. O apaixonado é míope, e onde o cidadão comum via concreto eu via modernismo, onde via pobreza eu via chance de crescimento, onde via tumulto eu via efervescência. Estava com vinte e cinco anos e queria esquadrinhar cada esquina, janela, porta desconhecida. Quase nem dormia. Ia do trabalho para algum bar, do bar para a minha cama ou para cama de outra pessoa, de lá para algum cinema ou galeria. Nesses anos, devo ter cruzado com meia dúzia de árvores, e nem reparei, preferia olhar para as copas dos neons.

Quando tive minha filha, a paixão esfriou um pouco. Pela primeira vez, reparei que a copa dos neons não faz sombra. Eu e ela saíamos às sete da manhã procurando uma réstia de verde e descobríamos a cidade que cresceu sem mãe. Filha pródiga do capitalismo, São Paulo só dá sombra para quem tem crachá ou cartão. Ainda assim, segui amando a maior cidade da América Latina, transando com ela pelo menos uma vez por semana, quando saía para jantar em restaurantes que só aqui, como um japonês escondido que servia comida de lutador de sumô.

Mesmo quando o meu casamento com São Paulo já capengava, essa cidade me deu orgasmos. Vivi na Praça da Sé uma das tardes mais bonitas da minha vida. Foi o ano em que o samba paulistano, depois de décadas morto, saiu do túmulo. Meio sem aviso, o carnaval tomou de novo as ruas. Não tínhamos como cenário o mar da Bahia, nem a pujança tropical do Rio de Janeiro, nem sequer os prédios pastilhados de qualquer cidade brasileira. Os edifícios do centro não tinham tinta, as janelas não tinham vidros, as pessoas nas janelas não tinham dentes. Avançávamos com nossas fantasias também imperfeitas, nossos penachos Made in China comprados às pressas na Rua 25 de Março, mas tudo bem, porque de repente estávamos na Ipiranga com a Avenida São João cantando juntos: alguma coisa acontece no meu coração, e com toda uma cidade a refazer pela frente.

Sim, eu e São Paulo fomos felizes. Tão felizes que até escrevi um livro para ela, o Tudo pode ser roubado. Talvez escrever um livro para um amante seja o canto do cisne. Só aprisionamos em uma obra aquilo que já não existe mais. Mas eu não sabia, nem agora eu sei direito. Só sei que nossa crise se agravou com a pandemia. Passei a falar de São Paulo na psicanálise. Passei a fantasiar com outros municípios. Sei o que vem erodindo de vez o nosso casamento. A riqueza de São Paulo são suas pessoas. Uma gente interessante e interessada que me faz lembrar de Sinatra: if you can make it there, you can make it anywhere. Nessa Nova York do hemisfério sul, onde o capital humano constrói uma beleza teimosa e rara, não encontrar com as pessoas, não falar com as pessoas, é não ter nada. Só restam os restaurantes vazios e as ondas de cimento quebrando nos viadutos.

Giovana Madalosso

Nasceu em Curitiba (PR), em 1975. É autora de A teta racional (livro de contos finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional), e dos romances Tudo pode ser roubado (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura) e Suíte Tóquio.

Rascunho