🔓 A nova cena literária angolana

Como pode a literatura florescer, num quadro de rebaixamento qualitativo do sistema educacional, de escassez de livros e de livrarias e de oferta cultural em geral?
Ilustração: FP Rodrigues
28/03/2022

* O autor escreve segundo o acordo ortográfico e a norma angolana da língua portuguesa, em formação.

O que está a suceder presentemente no domínio da literatura em Angola? É o que me proponho a apresentar, de forma resumida, na coluna de hoje. O período a que pretendo circunscrever-me são os últimos vinte e dois anos, isto é, do ano 2000 até hoje. A nova cena literária angolana, portanto, corresponde, em termos temporais, à literatura do século 21.

Assim, interessam-me os autores que começaram a publicar no início do presente século, independentemente do ano em que nasceram e do país onde vivam (em Angola ou na diáspora), bem como todos os factos, acontecimentos e manifestações relacionadas com o sistema literário angolano e que tenham ocorrido nos primeiros 22 anos do novo século.

A minha descrição será feita em cinco planos: produção, edição, distribuição, divulgação e relação entre a literatura e a educação.

Começando pelo número de autores que publicaram o seu primeiro livro no presente século, o jornalista Isaquiel Cori, editor do Jornal de Angola, levanta uma dificuldade para proceder a um levantamento rigoroso a respeito, pois muitos dos novos autores, se não mesmo a maioria, tem publicado os seus livros em edições do autor, que nem sempre chegam ao conhecimento do público tradicional. Note-se que isso deve-se, entre outros fatores, ao declínio das editoras em Angola. Além da publicação por conta própria, os jovens passaram a usar igualmente as redes sociais, sobretudo o Facebook, para divulgar as suas produções.

“Antes de 2000 quando um autor publicasse o seu primeiro livro tinha a preocupação de oferecer exemplares à imprensa, a escritores mais velhos e/ou a líderes de opinião, na esperança de que um dia falassem publicamente tanto do livro como do autor; depois de 2000 isso rarissimamente acontece”, disse-me Cori.

De acordo com as contas do mencionado jornalista, terão sido publicados neste período um pouco mais de mil títulos de igual número de novos autores. Acrescentou ele: “Mas são aos milhares os que se autointitulam escritores, mesmo não tendo nenhum livro publicado”.

Entre os novos autores publicados a partir do ano 2000, e daqueles que li, o meu preferido, à larga distância dos demais, é o poeta Nok Nogueira, seguido de Adriano Mixinge, historiador de arte e escritor (devia escrever mais). Para elaborar este texto, entretanto, realizei uma breve consulta a um pequeno grupo de escritores e editores locais e parece haver uma coincidência em torno dos seguintes nomes: Nok Nogueira, Gociante Patissa, João Fernandes André, Adriano Mixinge, Job Sipital, Mwene Vunongue, Tchiangue Cruz e Benjamim Mbakassy.

A esses nomes de autores habitualmente residentes e publicados em Angola, junte-se, necessariamente, os nomes de autores angolanos residentes no estrangeiro e que também começaram a publicar no novo século: Djaimilia Pereira de Almeida, Kalaf Epalanga e Yara Monteiro, que dispõem de outras condições de trabalho, divulgação e acesso ao mercado, inclusive internacional. Todos eles têm obras publicadas no Brasil.

Vários dos escritores que surgiram desde o início deste século estão organizados em movimentos literários. David Capelenguela identificou sete movimentos, mas, para Isaquiel Cori, movimentos literários estruturados e consistentes são fundamentalmente dois: o Levarte e o Litteragris. Todos eles são sem grande consistência teórico-doutrinária, apostando mais na realização de eventos literários, como sessões de declamação de poesia e outros, com a exceção do Litteragris. Este tem uma forte veia teórica, pugnando pelo desenvolvimento da crítica literária no país, mas a sua credibilidade foi afetada nos últimos tempos por casos de plágio em que alguns dos seus membros estiveram envolvidos.

É mister destacar, por outro lado, o surgimento de um forte movimento literário vocal, associado à cultura hip-hop, com intensas “batalhas” de spoken word, onde se têm notabilizado várias vozes femininas.

O desejo de publicação a qualquer custo e de sucesso imediato – note-se – é um traço comum à maioria dos escritores ou candidatos a escritores desta geração, o que não deixa de ser um sinal dos tempos neoliberais que vivemos no mundo. Isso é nefasto para a literatura, explicando a tendência para a superficialidade e a ligeireza da maioria dos livros publicados recentemente pelos referidos autores, divididos entre uma certa literatura cor de rosa e apressadas obras “inovadoras”, caracterizadas por um formalismo inócuo. Os já mencionados casos de plágio são fruto também desse afã de publicar e de alcançar o êxito a toque de caixa.

Quanto à produção de livros, tem-se assistido, de 2000 até esta data, a um declínio ou mesmo ao desaparecimento das editoras tradicionais em Angola. A União de Escritores Angolanos, a mais importante editora do país até aos anos 90, praticamente desapareceu da cena editorial. Outras duas editoras surgidas depois dos anos 90, a Nzila e a Chá de Caxinde, também fecharam as portas. Neste momento, restam, entre as editoras convencionais, a Mayamba e a Texto Editora, associada ao grupo português LeYa. Esta última está mais focada nos livros escolares, mas, esporadicamente, publica no país os autores angolanos editados em Portugal pela sua “irmã” no Grupo LeYa, a Caminho.

No presente século, surgiram novas editoras (cerca de trinta, segundo Isaquiel Cori), com estrutura menos pesada do que as tradicionais, mas também, pelo menos na maioria dos casos, com postura mais artesanal e amadora, quer dizer, menos profissional. Quase todas publicam de modo muito intermitente, recorrendo, sobretudo, à impressão por demanda. Destacam-se, entre elas, a Elivulu, criada em 2019 e com quatro títulos publicados (a sua atividade foi prejudicada pelo surgimento da covid 19, em 2020), a Cacimbo, criada pelo escritor Ondjaki, a Asas de Papel, a Editora Acácias e principalmente a Perfil Criativo.

Esta última justifica algumas referências à parte. Criada em Lisboa em 2015 por João Rodrigues, sobrinho de um grande poeta angolano da Geração da Cultura (anos 60 do século passado), João Abel, publicou desde então quase uma centena de autores angolanos, sendo um grande número deles jovens. Em 2016, instalou uma plataforma de comercialização online, a AUTORES.Club. Em 2019, fez uma parceria com a editora e distribuidora angolana Marmoco, para distribuição dos seus títulos em Angola e para a publicação no país de autores angolanos, mas esse processo foi interrompido por causa da pandemia da covid 19. É, sem dúvida, a editora que mais tem publicado autores angolanos nas primeiras duas décadas deste século.

A distribuição é um problema grave enfrentado pela literatura angolana. Em todo o país, há apenas 25 livrarias (recentemente, surgiram duas novas livrarias na capital, uma ligada à editora Mayamba, de que leva o nome, e outra, designada Kiela e criada pelo escritor Ondjaki). Os livros são vendidos em algumas (poucas) superfícies comerciais. Por isso, estão a surgir ultimamente algumas plataformas de distribuição online, ligadas a editoras ou independentes. Os lançamentos costumam ser também oportunidades de comercialização dos livros. As vendas pessoais por parte dos próprios autores são igualmente um recurso dos novos escritores, que para isso utilizam a internet, como forma de promoção dos seus livros. O facto de, ao contrário do que sucede em muitos países, o Estado não realizar compras de livros para o sistema escolar é um grande entrave à distribuição de livros e à sobrevivência das editoras.

No plano da divulgação e da promoção, os novos autores, surgidos no início deste século, têm-se revelado mais ágeis e inovadores do que os escritores das gerações anteriores. Desde logo, e em relação às formas convencionais de divulgação, através da imprensa, têm uma vantagem visível: como pertencem à mesma geração da maioria dos jornalistas que ocupam as redações dos diferentes meios de comunicação, beneficiam das facilidades de relacionamento pessoal de que dispõem. Além disso – e esse é, talvez, o seu principal diferencial –, os jovens escritores tomaram conta das redes sociais, sobretudo do Facebook. É lá onde publicam trechos das suas obras, polemizam, trocam impressões e criam identidades de grupo. Alguns fazem gala do seu amor pela leitura exibindo capas de livros que supostamente terão lido.

Os clubes de leitura, os book lovers e os influenciadores digitais são outro fenómeno já presente na nova cena literária angolana. Além do Facebook, o Instagram é outra plataforma digital onde podem ser encontrados vários deles, como Books Angola, Um Amor por Letras ou Livros São Portas. Assim, os titulares dessas contas realizam uma série de atividades em torno dos livros e da literatura, como apresentação e resumo de livros, leituras, sorteio de livros, curiosidades sobre os escritores, entrevistas, sugestões de leitura, concursos e outros. Alguns apoiam os autores a divulgar os seus livros, por vezes a troco de pagamento. Chamam-lhe “parcerias remuneradas”.

Uma nota final impõe-se, para realçar um ponto que tenho levantado habitualmente: a necessária e intrínseca relação entre educação e literatura, para o surgimento de novos valores literários em Angola. A degradação do sistema nacional de educação, sobretudo desde os princípios dos anos 80, impede objetivamente o surgimento e desenvolvimento de novos valores literários, comparáveis àqueles que integram a primeira e talvez a segunda geração pós-independência. Têm surgido, é verdade, alguns nomes promissores, mas uma, duas ou apenas três andorinhas não fazem a primavera.

De facto, como pode a literatura (e as artes em geral) florescer, num quadro de rebaixamento qualitativo do sistema educacional, a partir do ensino primário, de escassez de livros e de livrarias e de oferta cultural em geral, incluindo o desconhecimento ou falta de acesso ao que se produz no exterior? Obviamente, apenas um bom nível académico não faz um escritor (é preciso um ambiente cultural propício, experiência de vida e, sobretudo, talento criativo, algo que nem toda a gente possui ou é obrigada a possuir). Mas, repita-se, sem boa formação académica e sem cultura geral, nada feito.

É por isso – diga-se, para fechar – que, desde o surgimento de Ondjaki, os nomes que mais se têm destacado na nova literatura angolana, além de boa formação académica, têm, na quase totalidade dos casos, alguma vivência e experiência no exterior do país. Falo dos nomes mais conhecidos, como os já mencionados Djaimilia Pereira de Almeida, Kalaf Epalanga e Yara Almeida, mas também de Adriano Mixinge (que estudou em Cuba e foi adido cultural em Paris e Madrid) e do jovem e praticamente desconhecido Benjamim Mbakassy, vencedor da última edição do Prémio DST Angola-Camões.

João Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletânea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

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