🔓 A memória das pequenas coisas

A necessidade de se fechar os olhos e lembrar da simplicidade amorosa da infância na casa da avó
Ilustração: Eduardo Mussi
04/12/2022

Minha infância teve férias luxuosas. Não me refiro a lugares paradisíacos nos termos em que as redes sociais estipularam. Eu vivi – e acho que até de certa forma ainda tento viver um pouco – sem que esses mandamentos me definam. As férias luxuosas eram na casa da minha avó, em Minas. Eram os meses mais felizes da minha vida. Eu estava livre das obrigações escolares, da condição de ter que me adaptar àquelas intrigas que se estabelecem ao redor de nós na escola e da qual apenas nos livramos no dia em que percebemos que a opinião dos outros em relação a nós não tem a menor relevância. Pena que só descobrimos isso quando saímos da escola.

A casa da minha avó era um pequeno apartamento térreo com duas áreas onde eu e prima, primos e tias tomávamos sol e usávamos a mangueira à guisa de piscina. Ter tido na infância uma família grande foi o maior dos meus agradecimentos à vida. Eram dias repletos que se seguiam em andanças pela cidade, lanches, conversas acaloradas com todos os que se achegavam. A casa da minha avó era uma espécie de porto, para onde acorriam todos, cada qual com suas questões. A sala de televisão era o lugar das reuniões que misturavam sentimentos diversos de um assunto para o outro.

Eu dormia sempre com a minha avĂł, na cama grande dela. Meu avĂ´ era desalojado para o quarto ao lado. Ela acordava muito cedo. Quando eu abria os olhos, ia correndo na cozinha para ver como aquela senhora inquieta e falante se movimentava em sua rotina; eu gostava de observar os gestos, a forma como ela tirava o queijo do plástico e espalhava na lasanha, como ela esparramava o leite condensado em sua famosa torta de biscoitos… Mas de tudo, de tudo mesmo, o que eu mais gostava era do cafĂ© com leite com “pĂŁo de sal”. Eu chamava aquela iguaria de “pĂŁo careca”. Meu avĂ´ trazia da padaria um saco gigante de pĂŁo que era para todos depois que viessem desaguar naquele porto.

Na minha casa não havia café, simplesmente porque minha mãe não gostava. Então a descoberta daquele café com leite de saquinho, no copo de geleia, era um suprassumo da alegria. Minha avó colocava para mim, me dava o pão com manteiga – meu Deus, existe algo mais saboroso no mundo?

Esses gestos simples, coisas miúdas, estão sempre comigo. Quando fecho os olhos e quero pensar em coisa boa, me lembro da simplicidade amorosa que foi a minha infância na casa da minha avó. Acho sinceramente que o mundo precisa resgatar o prazer das pequenas coisas, pois, recheadas de emoção, são o que nos faz feliz de verdade. Pelos menos é assim comigo. O que eu carrego de mais eterno são as memórias das pequenas coisas.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira e Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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