🔓 A matemática do abraço

No vasto âmbito dos abraços — burocrático, apressado, carente, contido, impaciente, sufocante, afoito, grudento — a ânsia pelo enlace perfeito
21/11/2021

Em outubro deste ano eu me preparava para ir a Portugal a convite da Folio, o Festival Literário de Óbidos. O convite era muito significativo: seria a minha primeira mesa fora do país, acompanhada do meu primeiro lançamento fora, e tudo isso presencialmente, marcando o fim de um ano e meio de eventos remotos e de um isolamento que cumpri à risca, desinfetando maçãs e deixando de ver pessoas que eu amo. Isso já seria o suficiente para que Portugal passasse a despontar como um Éden nos meus delírios diurnos — parte do prazer da viagem vem de imaginá-la antes que aconteça —, mas havia algo mais efervescendo sob essa superfície. Em Lisboa eu ficaria hospedada na casa de uma das minhas melhores amigas, que havia se mudado para lá durante a pandemia. Desde então, seguíamos conversando por mensagens, com uma proximidade que levava a crer que ela ainda estava no bairro vizinho ao meu, mas, desde que surgiu o coronavírus, não trocávamos um abraço, e essa fantasia, de apertar seu corpo, passou a disputar lugar com meus devaneios regados a Tejo e vinho verde.

No começo, achei meio esquisito, fantasiar um negócio desses com uma amiga. Aos quarenta e seis anos, já fantasiei quilômetros de abraços, raramente fraternos. Vez ou outra, me imagino abraçando a minha filha, e olhe lá — fantasias quase sempre interrompidas por pensamentos como “ela precisa lavar melhor o couro cabeludo”. Não que eu só goste de abraçar quando há tesão. Gosto sempre que há afeto, e sinto afeto por muita gente, e bêbada sinto afeto por todo mundo, mas o gesto é meio, não fim.

Enquanto esperava na fila de embarque, imaginava a cena. Minha amiga abrindo a porta, trocando um sorriso comigo. Eu largando a mala na soleira, meus braços envolvendo seu corpo tão menor que o meu, o cheiro de xampu de camomila que ela usa desde a adolescência, o amor fluindo sem aquela preocupação de estar sendo inconveniente, de estar abraçando de mais ou de menos. No vasto âmbito dos abraços — burocrático, apressado, carente, contido, impaciente, desmesurado, sufocante, afoito, parco, frouxo, grudento, desconjuntado — eu ansiava pelo enlace perfeito. A intensidade e a secundagem mágica que atende a abraçantes em igual medida, como se num simpósio pregresso fosse definido o ângulo de cada bíceps, a força depositada em cada falange, os segundos e os décimos de segundo que riscam a linha tênue entre a saciedade e o fastio.

Com essa expectativa pousei em Lisboa, às cinco da manhã do dia 19 de outubro, percebendo que já tinha chegado dando bola fora. Não sei de onde tirei isso, mas avisei à minha amiga que chegaria na sua casa perto das oito da manhã. A caminho de sua casa, mandei algumas mensagens informando o equívoco mas ela, que deveria estar dormindo, não respondeu.

Ainda era noite quando o táxi me deixou na frente de um predinho amarelo na rua São José. Lisboa ainda dormia profundamente, nem os caminhões de carga e os esportistas que costumam rasgar a manhã estavam pelas ruas. Só a luz amarela dos postes refletindo na calçada de pedra. O táxi partiu e eu fiquei na frente do prédio, considerando fazer hora ali mesmo, de pé junto a minha bagagem, absorvendo a sensação de voltar à vida. Depois de quase dois anos trancada no meu apartamento, sentir a lufada de possibilidades que se sente ao chegar de viagem a uma cidade. Aquele momento que será lembrado ao irmos embora, quando olhamos para trás e nos vemos inocentes a tudo o que viria.

Infelizmente, cabeça e olhos são sustentados por pares de pernas, e essas cansam. Depois de divagar alguns minutos, concluí que passaria a odiar meu destino e suas possibilidades se tivesse que ficar ali de pé por uma hora. Me aproximei da porta e toquei o interfone. Minha amiga demorou a atender, certamente estava dormindo. Abriu?, finalmente perguntou, e a porta descolou-se do batente, revelando um lance de escadas longo e íngreme. Olhei para minha mala, um volume de brasileira acostumada a elevadores e (que constrangedor) a bíceps de porteiros. Parti lance acima como quem carrega um cadáver cultural, prometendo a mim mesma que pararia com a mania de trazer tantos sapatos e o dispensável secador de cabelos. Tive que parar para tomar fôlego umas três vezes. Quando cheguei ao andar, não consegui nem olhar nem sorrir para minha amiga, quanto mais largar a mala no chão. Cambaleava com o cansaço, no esforço final de empurrar a bagagem para dentro.

Só então me aprumei para abraçá-la, mas o gesto foi interrompido pela lembrança de que eu estava com máscara e de que tinha acabado de passar a noite no avião, com a roupa suja de mundo pandêmico. Titubeei, ela titubeou também, os quatro braços no ar sem saber o que fazer, eu logo vendo que deveria tirar os sapatos, me abaixando para fazê-lo. Quando levantei, a aura estava desfeita. Acho que trocamos um beijo rápido, nem tenho certeza, pois o companheiro dela apareceu e já fomos para a sala, discutindo a possibilidade de tomar ou não um café.

Alguns dias depois, enquanto falávamos alguma bobagem, viramos uma para a outra, começamos a rir e, quando me dei conta, estávamos dentro de um abraço. Ou de um amplexo, esse sinônimo tão bonito para a palavra abraço, que sugere de onde ele deve partir: do plexo, que nada sabe mas sempre sabe a hora certa.

Giovana Madalosso

Nasceu em Curitiba (PR), em 1975. É autora de A teta racional (livro de contos finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional), e dos romances Tudo pode ser roubado (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura) e Suíte Tóquio.

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