🔓 A influĂȘncia africana na lĂ­ngua portuguesa

A plasticidade e sonoridade da variante brasileira do portuguĂȘs resulta das vĂĄrias influĂȘncias das lĂ­nguas africanas, em especial angolanas
O angolano José Luandino Vieira é fundamental na expansão, rejuvenescimento e recriação da língua portuguesa
10/05/2021

Comemorou-se no passado dia 5 de maio, pela segunda vez, o Dia Mundial da LĂ­ngua Portuguesa, data instituĂ­da pela Unesco como reconhecimento da importĂąncia geopolĂ­tica desse idioma “neto do latim e filho do galego”, hoje falado por cerca de 280 milhĂ”es de pessoas espalhadas por todos os continentes, algumas delas em cinco paĂ­ses africanos.

A propĂłsito da efemĂ©ride, abordarei nesta coluna um aspeto pouco aflorado e de certo modo ignorado, inclusive, pelos usuĂĄrios africanos, cada vez mais numerosos, da nossa lĂ­ngua comum: a influĂȘncia africana na lĂ­ngua portuguesa. Devido Ă  natureza e ao espaço disponĂ­vel para este texto, trata-se apenas, naturalmente, de breves notas. Talvez os especialistas na matĂ©ria possam, um dia, estudar este assunto com mais conhecimento e profundidade.

Como aludi num poema que escrevi em 2009, Crónica verdadeira da língua portuguesa, ainda inédito em livro, esta é influenciada pelas línguas bantus africanas, particularmente angolanas (com destaque para o kimbundu, kikongo e umbundu), hå muitos séculos.

Isso Ă© mais visĂ­vel na variante brasileira da lĂ­ngua portuguesa, o que a HistĂłria, mais concretamente, o trĂĄfico de escravos, explica. Os angolanos nĂŁo sĂł foram os primeiros africanos a ser levados para o Brasil como escravos, como foram os mais numerosos. Por isso, e fora, parcialmente, a religiosidade de origem africana — onde os traços dos povos do Golfo da GuinĂ© sĂŁo tambĂ©m muito visĂ­veis —, a cultura brasileira Ă© profundamente devedora da cultura angolana. Leia-se a obra fundamental O trato dos viventes, do historiador brasileiro Luiz Felipe de Alencastro, para aprendĂȘ-lo de vez.

A influĂȘncia das lĂ­nguas africanas de Angola no idioma portuguĂȘs Ă©, desde logo, de natureza lexical. Centenas de palavras originĂĄrias das referidas lĂ­nguas foram incorporadas pela lĂ­ngua portuguesa, como, sĂł para dar meia dĂșzia de exemplos, quitanda, quizomba, quitute, cafunĂ©, muamba, carimbo e a celebĂ©rrima bunda. O Museu da LĂ­ngua Portuguesa em SĂŁo Paulo (no meio da pandemia sanitĂĄria e polĂ­tica que grassa neste momento no Brasil, foi uma boa notĂ­cia ter sabido da reabertura desse museu) tem uma secção apenas sobre essa herança. Acrescente-se, nesse sentido, que os estudos de Nei Lopes sobre o referido tema sĂŁo muito interessantes.

Contemporaneamente, e numa espĂ©cie de segunda vaga dessa influĂȘncia, vĂĄrias palavras e expressĂ”es da gĂ­ria angolana, em especial luandense — como kota (os portugueses escrevem cota), garina, bazar, malaico e outras —, foram igualmente incorporadas por todos os falantes da lĂ­ngua. O “vazar” dos paulistas e logo espalhado por todo o Brasil pode ter tido origem no angolanĂ­ssimo “bazar”, que, como se sabe, significa “ir”, “ir embora”, “sair”. Eu, que morei alguns anos no Brasil, sou testemunha de que, quando os paulistas começaram a usar esse verbo, jĂĄ os angolanos diziam “bazar”.

AlĂ©m dessa influĂȘncia lexical, as lĂ­nguas angolanas de origem bantu tambĂ©m influenciaram de maneira clara a variante brasileira do portuguĂȘs em termos de pronĂșncia, da abertura das vogais Ă  prĂłpria tendĂȘncia para a vogalização, que consiste em colocar sempre uma vogal entre duas consoantes (por exemplo, “pineu” em vez de “pneu”), assim como para omitir o “s” no plural (as lĂ­nguas bantus tambĂ©m nĂŁo usam “s” para o fazerem). Os dois Ășltimos casos sĂŁo percetĂ­veis, sobretudo, na linguagem oral.

Por fim, podem ser identificadas influĂȘncias das lĂ­nguas africanas na estrutura do portuguĂȘs falado e escrito no Brasil. Os exemplos mais comuns serĂŁo, talvez, a forma de conjugação dos verbos reflexos e a colocação dos pronomes.

Ou seja, a tĂŁo cantada plasticidade e sonoridade da variante brasileira do portuguĂȘs resulta sobretudo das vĂĄrias influĂȘncias africanas que a mesma sofreu, sem esquecer, o contacto entre ela e as lĂ­nguas indĂ­genas ou nativas, de efeitos igualmente inevitĂĄveis.

AlĂ©m dessas relaçÔes histĂłricas entre o portuguĂȘs e as lĂ­nguas africanas, Ă© mister igualmente destacar o papel das literaturas africanas (como, desde muito antes, o da literatura brasileira) na expansĂŁo, rejuvenescimento e recriação da lĂ­ngua portuguesa. Mia Couto Ă©, nos dias de hoje, o nome que primeiro vem Ă  lembrança. Mas, a rigor, Ă© imperioso convocar e lembrar, sobretudo aos mais novos, aquele que foi realmente revolucionĂĄrio e fundante: JosĂ© Luandino Vieira.

Recordo, aqui, a cĂ©lebre frase de AmĂ­lcar Cabral: “A lĂ­ngua portuguesa Ă© uma das melhores coisas que os portugueses nos deixaram”. Foi, precisamente, por terem-no reconhecido, que os povos das antigas colĂłnias africanas de Portugal fizeram do portuguĂȘs, como me disse Luandino uma vez em conversa, um “trofĂ©u de guerra”, transformando-o num instrumento nĂŁo apenas da sua libertação, mas tambĂ©m da sua unidade interna, uma vez conquistadas as independĂȘncias, e bem assim o seu primeiro veĂ­culo de comunicação internacional.

A lĂ­ngua portuguesa foi devidamente nacionalizada pelos nossos povos, tal como, antes, jĂĄ havĂ­amos nacionalizado a mandioca ou o milho, provenientes da AmĂ©rica do Sul, assim como o cristianismo e, hoje, o fato [terno] e gravata, o computador e o smartphone. Por isso, ajudamo-la a construir-se, reinventar-se e expandir-se todos os dias, desde — repito — hĂĄ sĂ©culos. Para dar um exemplo atual, os paĂ­ses africanos de lĂ­ngua portuguesa fizeram mais pela expansĂŁo do portuguĂȘs em menos de 50 anos do que a antiga potĂȘncia colonizadora em 500 anos.

A concluir, nĂŁo posso deixar de observar que a crescente expansĂŁo da nossa lĂ­ngua comum deve-se igualmente Ă  sua natureza. Para resumir, direi que a mesma Ă© suficientemente plĂĄstica para absorver todas as influĂȘncias, recriando-se, rejuvenescendo-se e modernizando-se permanentemente, sem pĂŽr em causa a sua estrutura.

* O autor escreve segundo o acordo ortogrĂĄfico e a variante angolana da lĂ­ngua portuguesa.

JoĂŁo Melo

Nasceu em Luanda (Angola), em 1955. É escritor e jornalista. Morou no Brasil de 1984 a 1992 como correspondente de imprensa. Tem mais de 20 livros publicados, entre poesia, conto e ensaios, em Angola, Portugal, Itália, Cuba e Brasil, onde publicou a coletñnea de contos Filhos da Pátria (Record, 2008). Pode ser acompanhado no Twitter e no Instagram.

Rascunho