🔓 A casa da mãe da gente

Uma casa que aos poucos, numa mágica, vai se transformando em mais afeto com jabuticabas na sala
Ilustração: Bruno Schier
23/01/2023

É diferente. Tem um cheiro, tem qualquer coisa no ar, uma energia. É um banho de sal grosso, uma sessão de benzeção, todos os cantos da nossa vida defumados ao mesmo tempo, assim que a gente atravessa a porta.

A casa da mãe da gente pode ou não ser a casa da nossa infância, o lugar que a gente cresceu, uma caixa com memórias e algum ar de naftalina. No meu caso, a casa da minha mãe ainda guarda algumas caixas de tudo aquilo que eu não considerei tão importante pra levar comigo quando fui embora, mas que eu nunca tive coragem para jogar fora: todas as minhas agendas e diários desde 1992, um pôster de um casal argentino dançando Tango sem sorrir, um cofre de barro em forma de porco que eu trouxe de uma viagem ao Vale do Jequitinhonha, oito ou nove livros bons mas nem tanto. Milo, o cachorro do Timtim.

Tem uma garrafa de vidro com uma paisagem de areia e o meu nome escrito lá dentro, é uma praia bonita, coqueiros altos, um mar agitado que, eu aposto, tem águas quentes. Mas se eu tivesse que escolher entre esse mar e essa casa, eu fico mil vezes com essa casa, que agora tem fechadura eletrônica e ninguém precisou me falar a senha, eu já sabia.

A casa da minha mãe tem também o meu pai, sentado sempre no mesmo lugar do sofá, usando os mesmos sapatos (sim, ele usa sapato em casa!), sempre a postos para inventar qualquer coisa, resolver qualquer coisa, construir um móvel, talvez. Vez ou outra os dois ficam na varanda, esperando que eu chegue.

É pra cá que eu corro quando eu preciso, se o pé quebra, se um cano estoura, se uma angústia fica grande demais e transborda. Foi pra cá que eu vim horas depois de fazer xixi num potinho e encarar os dois tracinhos num teste que mudou pra sempre a minha vida. Eu já estava de pijama, e vim assim mesmo.

A casa da mãe da gente é sempre uma casa, é diferente, vem com mágica dentro. E, agora, tem um monte de brinquedo espalhado no chão.

A casa da minha mãe, que é um apartamento, tem um pé de jabuticaba ali na sala, quase fazendo cócegas no teto, e a danada produz o ano inteiro. Fui eu que dei essa árvore, de presente, num certo Dia das Mães. Cada jabuticaba que nasce ali tem destino certo, e não é a minha boca.

Vem Antônio, a vovó guardou as juticabas pra você, estão madurinhas, vamos pegar?

Não tem nada mais bonito que ver a casa da mãe da gente se tornando uma casa de vó.

Marcela Dantés

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1986. Lançou em 2016 a coletânea de contos Sobre pessoas normais (Patuá). Seu primeiro romance, Nem sinal de asas (Patuá), foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2021 na categoria Melhor Romance de Estreia e do Prêmio Jabuti 2021, na categoria melhor Romance Literário. Em 2022, lançou João Maria Matilde, pela Autêntica Contemporânea.

Rascunho