Há 119 anos vinha ao mundo Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), o mineiro que recebeu uma ordem divina de ser gauche na vida — e acabou se tornando, ao contrário do que o anjo torto lhe ordenou no Poema de sete faces, um dos nomes mais importantes da literatura brasileira.
Drummond nasceu em Itabira (MG) e lançou seu primeiro livro, Alguma poesia (1930), antes dos 30 anos. De acordo com o autor, no texto Autobiografia para uma revista, o conjunto “traduz uma grande inexperiência do sofrimento e uma deleitação ingênua com o próprio indivíduo”.
A declaração mostra uma das facetas do mineiro: a de, parece, nunca ter se rendido à vaidade dos holofotes, mesmo que tenha atingido o difícil feito de ser bastante celebrado enquanto vivo. Ainda mais para um homem dedicado aos versos, que também transitou pela prosa, como em Confissões de minas (1944), e publicou trabalhos para o público infantil, como em O elefante (1983).
Ainda nas palavras de Drummond, Brejo das almas — seu segundo livro, de 1934 — já é mais organizado, possuindo “uma consciência crescente da sua precariedade e uma desaprovação tácita da conduta (ou falta de conduta) espiritual do autor”. E é no trabalho seguinte, enfim, que surge alguma satisfação pessoal: “Penso ter resolvido as contradições elementares da minha poesia num terceiro volume, Sentimento do mundo (1940)”.
Trajetória
É curioso notar como alguém do calibre de Drummond não se considerava um poeta completo. “Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseje por dor de cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação”, anotou em Autobiografia para uma revista, sendo que o raciocínio é desencadeado por uma autocrítica.
Drummond julgava seu próprio progresso lentíssimo, admitia não escrever muito e achava que não se exigia o suficiente dos poetas brasileiros — “menos do que se reclama ao pintor, ao músico, ao romancista”, explica. Essa visão dura de si mesmo, no entanto, não impediu que ele se tornasse conhecido em todo país e ganhasse alguns dos principais prêmios nacionais, como o Jabuti, APCA e Juca Pato.
O que talvez pudesse ser considerado um grande feito em sua trajetória, porém, Drummond não quis: nunca se candidatou a uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL). Sobre isso, o trecho de uma entrevista que concedeu em outubro de 1986 para O Estado de S. Paulo, um pouco antes de morrer, pode ser esclarecedor:
Eu sou uma pessoa inteiramente pessimista, cética. Não acredito em nenhum valor de ordem política, filosófica, social ou religiosa. Acho a vida uma experiência que tem de ser vivida, mas que se esgota e termina, acabou, não tem nada.
Curiosidade: Drummond versus Bruxo
Apesar de hoje ser considerado um dos nomes mais importantes da poesia brasileira, Drummond já foi um jovem como qualquer outro. Em 1925, conforme informações de Hélio de Seixas Guimarães na introdução ao livro Amor nenhum dispensa uma gota de ácido (2019), o poeta publicou um texto — Sobre a tradição em literatura — em que aconselhava o público a repudiar Machado de Assis (1839-1908), o Bruxo do Cosme Velho.
No alto de seus 22 anos, “cheio de ímpeto juvenil”, o mineiro parecia enxergar o autor de Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899) como uma mobília velha a ser substituída. Os novos rumos das letras, de acordo com correspondências que trocou por décadas com Mário de Andrade (1893-1945), exigiam renovação.
A atitude é muito curiosa se tratando do mesmo autor do poema A um bruxo, com amor, lançado em 1958, e de alguém que acabou publicamente defendendo o trabalho de Machado. Esse tempo todo que separa o ataque do elogio fez com que Carlos, afinal, admitisse sobre o Bruxo: “Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro”.
Análises e dicas
Ao longo dos 21 anos de Rascunho foram publicados vários textos sobre o trabalho de Drummond. Nesta data comemorativa, leia a análise que Wilbert Salgueiro fez do poema Mancha e o ensaio de Antonio Carlos Secchin sobre como a geografia urbana do Rio de Janeiro permeia a obra do mineiro.
Ainda para conhecer mais a fundo o trabalho do poeta, Affonso Romano de Sant’Anna — que escreveu por muito tempo no Rascunho — assina o livro Drummond, o gauche no tempo, fruto de quatro anos de pesquisa e no qual o autor repensa a obra drummondiana.
Como dicas de leitura, enfim, os livros José (1942), A rosa do povo (1945) e Claro enigma (1951) são boas pedidas. E, aos que ainda acompanham os passos de Drummond, vale lembrar que a Companhia das Letras, após dez anos publicando seus livros, não é mais a casa do poeta. Ainda assim, será pela Companhia que Humberto Werneck publica em 2022 a aguardada biografia de Drummond.