1.
Ă€ Ă©poca do surgimento de Os sofrimentos do jovem Werther, a Europa começava a apresentar novidades culturais que rompiam com a lucidez do Iluminismo, tais como algumas sinfonias de Haydn, de Mozart, e no plano literário, com o chamado “romance sensĂvel”, que relatavam amores proibidos entre pessoas de classes diferentes e com desfecho trágico. NĂŁo era uma entrega total ao Romantismo, mas já traziam alguns de seus indĂcios. A forma preferencial para desenvolvimento do enredo era a troca de cartas. Assim, foi, por exemplo, A nova HeloĂsa, um gigantesco livro de Rousseau, que causou certo tremor de terra entre os meios letrados; afinal, nĂŁo era frequente, na literatura, que uma mocinha se apaixonasse por seu professor, e que esse professor chegasse Ă conclusĂŁo que o melhor era se separarem temporariamente.
2.
Novidade a valer foi o Werther, aparecido em Leipzig no ano de 1774, uma novela de poucas páginas e imenso coeficiente sulfuroso. Goethe, na altura, com 25 anos, era um brilhante intelectual, bonito, alegre, esportista, cercado por pessoas que o adoravam. Vinha de uma famĂlia rica de Frankfurt, e, desse modo, nada lhe faltava. Apaixonava-se com facilidade, hábito que manteve inclusive na alta idade. O homem certo para escrever uma novela de amor. E escreveu-a, e publicou-a. E foi um estrondoso sucesso e um escândalo. Digamos assim: fosse hoje, nĂłs estarĂamos na fila para pegar seu autĂłgrafo e acompanharĂamos com interesse tudo o que ele viesse a dizer ou fazer.
3.
O enredo Ă© tĂŁo conhecido que já nĂŁo se fala em spoiler: um jovem apaixona-se, nĂŁo Ă© correspondido e se suicida. Uma histĂłria que Ă© contada pelo prĂłprio jovem, Werther, dirigida a seu amigo Wilhelm, atravĂ©s de uma sucessĂŁo de cartas. Como nĂŁo podia contar a prĂłpria morte, esta Ă© contada por outros, que o encontraram sem vida e com a pistola na mĂŁo. Vestia uma indumentária colorida em tons fortes — isso causou uma moda entre jovens alemĂŁes, que nĂŁo apenas copiaram seu modelo de casaco e calças, como imitaram seu trágico fim, numa onda de suicĂdios que ainda está por ser estudada em pormenor.
4.
Afirmei que o Werther foi uma novidade, mas por que foi uma novidade? Em primeiro lugar, porque havia um ambiente cultural e social propĂcio para o florescer de celebridades, que já permitia paixões coletivas dirigidas Ă obra, mas, tambĂ©m, ao seu autor. Era portanto normal que as pessoas, especialmente jovens, nĂŁo tivessem problemas de andar com o livro de Goethe debaixo do braço: eram logo considerados Ă la mode. Sob olhares mais conservadores, poderiam ser vistos como uma ameaça Ă s famĂlias, excelente propaganda da obra, mas, ao mesmo tempo, poderiam agradar aos mais audazes, esses que já abandonavam as perucas rococĂłs sobre o crânio e se atreviam a usar seus cabelos naturais.
5.
Em segundo lugar, o Werther era uma novidade porque se tratava de uma voz que escrevia em primeira pessoa; isso não era inédito, claro; a personagem era alguém contemporâneo, um burguês habitual, com emprego público na Justiça, que poderia ser encontrado num restaurante, ou discutindo num armazém ou bebendo numa cervejaria. Não era um poeta, a rigor, nem um homem de letras, mas um ser como nós, que, de repente, poderia apaixonar-se de maneira avassaladora e chegar a uma ação fatal. Isso ninguém tinha lido, e acrescente-se da personagem, era um homem, e, digo tautologicamente, não era uma mulher, a quem se autorizava tais fraquezas e capaz de escrever: “Vou vê-la!, exclamo pela manhã quando desperto e olho com serenidade em direção ao sol nascente! Vou vê-la! E já não tenho outro desejo para todo aquele dia. Tudo, tudo, se afoga nessa perspectiva”. Essa exasperação masculina, inegável, era ousada, quase pecaminosa.
6.
Em terceiro lugar, a personagem, pela idade, pelas circunstâncias sociais e experiĂŞncias humanas, com facilidade poderia ser confundida com o prĂłprio autor, o que acrescentava um delicioso picante de voyeur ao prestĂgio da obra. O Werther, assim, guardadas as imensas diferenças semânticas, talvez tenha sido um precursor do que virĂamos a chamar, pelo tempo que durou, de autoficção. Os sofrimentos do jovem Werther Ă© o livro que mais vejo colado Ă pessoa de seu autor. Fala-se em Hamlet, D. Quixote, Madame Bovary, O morro dos ventos uivantes; mas, ao declinarmos o tĂtulo de que nos ocupa, Ă© sempre: “O Werther, de Goethe”. Sabemos o quanto a heroĂna, Charlotte, tinha o mesmo nome de uma amada de Goethe, mulher casada com um complacente Kestner. Leia-se: “Como eu me deleitava na contemplação de seus olhos negros durante esta conversa! Como seus lábios vermelhos e suas faces frescas e vivas cativavam minha alma inteira! Como, mergulhado no som esplendoroso de sua fala, Ă s vezes nem sequer ouvia as palavras que ela proferia”. Convenhamos, uma joia de encantamento, que poderia ter sido o mesmo fascĂnio de Goethe perante sua prĂłpria e “real” Charlotte.
7.
A trabalho, numa visita a Weimar, aproveitei um momento de folga e estive no casarĂŁo de Goethe, situado na praça central. Caminhei por suas imensas, mal distribuĂdas e silenciosas salas. Tudo ali respira solenidade e paz. Já era o Goethe velho, consagrado e cheio de medalhas e tĂtulos. Sim, o anciĂŁo caminhava por ali, apoiado em sua bengala, e quando ia Ă janela para olhar a praça, decerto lembrava de Werther e seus amores, mas nĂŁo com nostalgia. Decerto, e com malĂcia, lembrava das palavras de CĂcero: “Incapazes que somos de resistir a todas as tentações, temos que ceder, aqui e ali, ao prazer”. SaĂ sorrindo, e mais ainda quando entraram trĂŞs ruidosos turistas brasileiros que, ao lerem no capacho da porta principal a palavra “Salve!” admiravam-se de que Goethe sabia portuguĂŞs. NĂŁo tive o descaramento de explicar a eles que se trata de uma palavra latina.
8.
A importância do Werther foi tĂŁo avassaladora — e transformadora — que autoriza evocar a metáfora do surgimento da explosĂŁo seminal do universo, ocorrido há mais de 13 bilhões de anos: apesar do tempo e da distância, suas ondas cĂłsmicas chegam atĂ© nĂłs. Foi lido por sucessivas gerações. NĂŁo sei se posso falar em sua atualidade; Ă© possĂvel que esta nĂŁo possa ser encontrada no plano das indagações sociolĂłgicas ou teĂłrico-literárias; mas sua ideia persiste, e sempre nova. Hoje, o amor foi relegado Ă irrelevância num mundo cada vez mais cĂnico e brutal, mas sempre que lemos essa obra acreditamos nele, tanto para lembrarmos a extrema juventude, quanto para reconhecĂŞ-lo, latente, dentro de nĂłs. Vai para a mochila.