Poesia à prova de traças

Glauco Mattoso: "Como sou um poeta essencialmente satirico, costumo commentar factos do meu tempo"
Glauco Mattoso, autor de “Raymundo Curupyra”
01/10/2013

À prova de traças e dos corretos — política, gastronômica e literariamente —, Glauco Mattoso construiu uma extensa (e recordista) produção de sonetos, caracterizados pela sátira política e de costumes. Buscando a potência da literatura desde jovem, quando um glaucoma começa a lhe tirar a visão — e vira um trocadilho para seu nome artístico —, Mattoso joga com a tradição e contra as “egrejas” em obras como Raymundo Curupyra (2012), romance contado em duzentos sonetos heroico-decassílabos; Tripé do tripúdio (2011), reunião de narrativas breves sobre temas caros a sua obra, como cegueira, escatofilia, homossexualidade e as perversões humanas do dia-a-dia; e sua estréia na poesia, em 1975, com Apocrypho apocalypse.

Neste Inquérito, o escritor paulistano, nascido em 1951, exibe um humor que não se curva nem se impõe, ao falar de seu processo de escrita (feito apenas de memória, com certa “assistência espiritual”), de seitas literárias e de seu exigente leitor — seguindo o sistema etimológico vigente desde a época clássica até a década de 1940.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Quando me dei conta de que perderia a capacidade de ser leitor. Isto é, quando tive noção da gravidade do meu glaucoma congênito e da inexorabilidade da cegueira, não obstante todas as tentativas cirúrgicas. Isso se deu ainda na adolescência, quando eu não podia fazer nada do que o resto da molecada fazia: jogar bola, andar de bicycleta, nadar, dansar… Então me refugiei na leitura e, pela necessidade de desabafar, comecei a desejar para mim a mesma vocação dos auctores que lia, na minha ja aggravada myopia.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Emquanto enxerguei, a principal dellas era rascunhar ao maximo (sempre em manuscripto e em lettra de forma), rectificar ao maximo, antes de passar a limpo na machina de escrever. Uma vez transcripto, a mania passava a ser “congelar” o texto e jamais reescrever os originaes. Ja na cegueira, mantive a mania ao compor de memoria e, depois, ao digitar cada poema, mas então passei a acreditar numa especie de “inspiração” durante a composição, mais propriamente uma “assistencia espiritual” (não confundir com psychographia) dos “demonios da poesia”, corporificados nas personas de illustres cegos, como Milton ou Borges. Acredito, por exemplo, na possessão de Pessoa e noutros casos de “magia”, mas não na mera escripta automatica dos surrealistas, e sim numa mixtura de automatismo e technicismo lyrico, como na poesia dos repentistas. Thematicamente, minha mania é exgottar todas as variantes da mesma cellula creativa, dahi a quantidade excessiva de sonetos que compuz, para poder cobrir repetidamente a maior variedade de assumptos.

• Que leitura é imprescindível no seu dia-a-dia?
Como sou um poeta essencialmente satirico, costumo commentar factos do meu tempo, dahi a necessidade de ler jornaes diarios. Agora que estou cego, substituo essa leitura pela audição das radios noticiosas, mas não dispensei a ajuda de alguem que leia em voz alta alguma materia impressa.

• Se pudesse recomendar um livro à presidente Dilma, qual seria?
Ah, no caso della só mesmo uma grammatica da lingua portugueza. Sinão ella ainda vae acabar chamando uma estudante de “estudanta”, uma ouvinte de “ouvinta” e uma transeunte de “transeunta”.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Primeiro, o silencio. Nem permitto musica de fundo, por mais suave. Normalmente componho à noite, durante periodos de insomnia. No começo sahia tudo de memoria e eu guardava até digitar no computador fallante. Agora componho directo no computador, com phones de ouvido para não perturbar ninguem que esteja dormindo.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Tambem solidão e silencio, quando eu podia ler. Agora ainda é indispensavel um baixo nivel de ruido, ja que “leio” ouvindo a voz synthetizada do computador.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Em vez da minima linha diaria, como queriam os romanos, para mim tornou-se compulsiva a producção de pelo menos dois ou trez sonetos por dia e, no limite, uns vinte ou trinta. O vicio foi se tornando tão avassallador que, como o alcoholatra ou o fumante, fiz um esforço quasi sobrehumano e parei de sonetar ha mais de um anno. Ufa! (risos)

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Ver a imagem graphica das lettras no papel do futuro livro, escolher a fonte, por exemplo, times ou garamond, à medida que vou digitando. Pode parecer um paradoxo (e tudo para mim envolve paradoxos, barrocamente fallando), mas, embora cego, não perdi a memoria visual e até sonho em cores, nitidamente. Para mim o pesadelo é accordar do sonho, é a insomnia. Ou seja, a realidade é o peor, nunca a phantasia, por mais exaggerada que esta seja, para bem ou para mal.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
Outro escriptor. Eu poderia dizer que é a preguiça de ler, de estudar ou de trabalhar de maneira programmada. Poderia dizer que é o editor, que não sabe reconhecer nosso talento ou quer favorecer algum apadrinhado. Mas o facto é que, como em toda actividade humana, a inveja e o despeito entre os pares se contrapõe à apparente solidariedade de classe. No meu caso, ninguem falla abertamente, mas sei que muitos collegas não se conformam com o facto de que um cego seja capaz de compor de memoria milhares de sonetos, fora a producção em prosa, e ainda por cyma dispense a consulta a diccionarios (inclusive os de rimas) durante o processo de creação. Claro que os mais preguiçosos são justamente os mais invejosos e os editores deshonestos são justamente os que mais me boycottam. Mas isso é consequencia logica. (risos)

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Os modismos e as panellinhas ou egrejinhas poeticas. Os modismos atraphalham porque, por exemplo, só depois que um Cinqüenta tons de cinza vira Best-seller é que alguem se lembra de que um cego sadomasochista ja escreveu romances bem menos assucarados. As panellinhas atrapalham porque dão a impressão de que só existe um typo de poesia “verdadeira” quando, na verdade, querem meramente conquistar e manter uma reserva de mercado editorial e de matta atlantica academica. A poesia, como a litteratura em geral, está muito acyma dessas seitas ou dessas receitas. Quando eu adopto o soneto como molde e a orthographia etymologica como opção esthetica e politica, não o faço por me achar dono da verdade, e sim por me achar investido no direito de escolha, essencial ao livre arbitrio e ao intellecto humano e humanista.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Emílio de Menezes, o curitybano gordão e politicamente incorrecto que Machado de Assis não queria na ABL por causa da vida bohemia, que os collegas invejosos criticavam por causa da vocação “mercenaria” de fazer annuncios publicitarios em verso, que os modernistas desprezavam por causa do supposto obsoletismo parnasiano, que os criticos moralistas condemnavam por causa da veia fescennina ou que os nutricionistas actuaes censurariam por causa da gluttoneria, mas cuja poesia é magistralmente exemplar, seja a serio ou fazendo humor. Até no Parnaso de além-túmulo elle apparece arrependido do mundanismo e do hedonismo, mas o facto é que o proprio Chico Xavier não deixou de prestar attenção nelle… (risos)

• Um livro imprescindível e um descartável.
O imprescindivel é aquelle produzido pelo ego do Augusto dos Anjos, gigantesco na sua pequenez physica. O deschartavel é qualquer calhamaço produzido pelo ego inflado porem minusculo dum Paulo Coelho ou dum FHC.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Si for de ficção, chegar ao meio e não saber ter fim ou, peor, nem sahir do comeeço. Peor ainda quando, para justificar a perda de rumo, o auctor allega que um romance ou conto não precisa ter começo, meio e fim. Si for de poesia, incorrer no verso de pé quebrado em caso de forma fixa ou na linguagem telegraphica em caso de verso livre. Em summa, o escriptor tem de ter conhecimento de causa: uma boa historia para contar (de preferencia veridica ou verosimil) em prosa, ou dominio da palavra (appropriada e figurada) em poesia.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Qualquer um que fosse tractado como politicamente correcto, philosophicamente correcto, religiosamente correcto, sexualmente correcto, gastronomicamente correcto, etc. Só reconheço a necessidade da correcção em caso de regras de versificação e de orthographia classica, e mesmo assim as transgrido quando crio minhas proprias regras, por signal mais rigorosas que as officiaes ou tradicionaes.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
No caso do “canto” vocal, um do Luiz Gonzaga que falla do assum preto, passaro que canta melhor depois que lhe furam os olhos, parabola que me serve de contraponcto ao caso de Sansão, que perde a força dos cabellos mas só se torna realmente escravo dos philisteus por ter sido cegado. Desses typos de cantos e contos tirei motivo para muitos sonetos. No caso do “cantho” local, minha propria sapateira, onde apalpo ora um pé de chinelo, ora um de bota, ora um de tennis, conforme o fetichismo do momento… (risos)

• Quando a inspiração não vem…
Basta uma sessão de punheta. A primeira phantasia masturbatoria que vier à mente é sempre um thema fertil para a litteratura, ainda que recorrente.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Emílio de Menezes. Mas não para um café e sim para um banquete dionysiaco e uma bacchanal homerica, pois sei que elle toparia, para desespero do Chico Xavier. (risos)

• O que é um bom leitor?
Aquelle que tracta o escriptor como seu escravo, seu palhaço, seu judas, sua cobaya e seu sparring. Um poeta cego e masoca não poderia esperar leitor melhor. Por isso escrevo pensando nelle.

• O que te dá medo?
Aranha. Principalmente as cabelludas. Ja fiz dois livros com sonetos sobre arachnophobia. Mas ja tractei de practicamente todas as phobias em verso e prosa. Ellas fazem parte da fraqueza humana, portanto da natureza humana.

• O que te faz feliz?
Comer coisas que os nutricionistas e medicos chamam de “alimentação não saudavel”, typo baixa gastronomia. Muita gente me acha um tarado sexual, mas extranharia si eu dissesse que prefiro comer a gozar. Eu ia dizer que prefiro dormir, mas, como soffro de insomnia, deixo para dormir quando for duma vez.

• Qual dúvida ou certeza guia seu trabalho?
A certeza é de que um dia serei reconhecido como recordista na quantidade de sonetos, ja que, antes de mim, era o italiano Giuseppe Belli, com 2.279, ao passo que eu cheguei aos 5.555. A duvida é se me reconhecerão tambem como qualitativo ao menos em dez por cento da obra, o que ja significaria mais sonetos que Camões, Petrarca ou Bilac. (risos gargalhados)

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Tirar copia em diskette, CD, HD externo, pendrive, nas nuvens, alem da folha impressa. Nunca se sabe que typo de traça, animal ou humana, nos attaccaria.

• A literatura tem alguma obrigação?
Claro. Como todo officio, tem obrigação de entregar aquillo que annuncia, para não incorrer em propaganda engannosa. Si me annuncio como sonetista, entrego um soneto. Si me annuncio como fescennino, entrego sacanagem. Si me annuncio como cego, entrego minha inferioridade como ser humano e minha revolta contra qualquer injustiça, humana ou divina. Mas si me annunciasse como messias e entregasse o pão que o diabo amassou, descumpriria minha obrigação e fraudaria meu officio, como muitos auctores papparicados que vendem gatto por lebre e merda por pão.

• Qual o limite da ficção?
A realidade. A phantasia não pode extrapolar muito, sinão não convence, como no realismo magico. Mas a realidade pode extrapolar à vontade, como nas memorias de sobreviventes do genocidio, dos campos de concentração nazistas ou da bomba atomica alliada.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Ao meu cachorro. Elle é da raça basset hound, muito superior à raça humana, e merece que lhe satisfaçam todas as vontades. Por isso tem aquelle olhar piedoso de lider messianico.

• O que você espera da eternidade?
Que seja infinita emquanto dure, como diria Vinicius. Tudo que nunca acaba enjoa. Até orgasmo. Até pizza. Até soneto.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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