Os voos da imaginação

Maria Esther Maciel: "A escrita tem uma grande relevância para mim, já que preciso dela para me manter viva"
Maria Esther Maciel, autora de “Pequena enciclopédia de seres comuns”
01/02/2022

Contar histórias a mangas e goiabas foi a forma que a mineira Maria Esther Maciel encontrou para exercitar os voos da imaginação quando criança. Mais tarde, ao descobrir a poesia de Drummond e as narrativas de autoras românticas de língua inglesa, não teve escolha: tornou-se escritora. Além de um extenso trabalho ensaístico, veiculado em livro e diferentes periódicos nacionais, assina obras de ficção e poesia. Os verbetes de Pequena enciclopédia de seres comuns (2021), ilustrados por Julia Panadés, e os poemas da antologia Longe, aqui (2020) são suas publicações mais recentes.

• Quando se deu conta de que queria ser escritora?
Na infância, gostava de subir nas árvores do quintal de minha casa para contar histórias para as mangas e goiabas. Depois, substituí as frutas pelos vidrinhos de remédio vazios que eu colecionava. Mas só me dei conta mesmo de que queria ser escritora na adolescência, quando descobri a poesia de Carlos Drummond de Andrade e os romances das escritoras românticas de língua inglesa.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Sempre gostei de listar palavras que poderiam, eventualmente, ser usadas em meus textos de poesia e ficção. Minha obsessão por dicionários é antiga. Costumo também andar com uma caderneta na bolsa para fazer anotações sobre o que vejo, penso ou imagino ao longo do dia. Além disso, nunca deixo de escrever comentários sobre livros que leio, nem de recolher, em cadernos, apontamentos sobre as pesquisas que faço em torno dos temas que pretendo abordar. Tenho dezenas desses cadernos e cadernetas. Outra de minhas obsessões é reler e reescrever inúmeras vezes os meus textos antes de considerá-los prontos.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Depende do dia e das minhas demandas internas. Ler pelo menos um poema faz parte do meu ritual diário. Costumo ler jornais assim que acordo e, à noite, antes de dormir, nunca deixo de ler um punhado de páginas de algum dos livros que estão na minha mesinha de cabeceira.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
Sabemos que esse boçal é analfabeto, não sabe ler nada. E mesmo que aprendesse, não conseguiria entender livro nenhum. Muito menos o que eu teria para recomendar a ele: Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Sozinha no meu ambiente de trabalho, ao som de música clássica, jazz e instrumental brasileira. Tenho uma playlist no Spotify que nomeei Para escrever. De manhã, escrevo acompanhada de chá verde ou preto. À tarde, de uma infusão de ervas. À noite, nunca dispenso umas taças de vinho tinto.

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Uma poltrona confortável, com boa luz. Gosto muito de ler também na mesa do jardim. Ou na cama, com o apoio de travesseiros e almofadas. O silêncio também me é necessário. Isso não significa que não possa ter prazer em ler um livro na sala de espera de um consultório ou em pé, numa longa fila.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando consigo me dedicar às minhas pesquisas, cumprir meus compromissos agendados para o dia e escrever nem que seja um parágrafo.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
Os voos da imaginação.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
O celular, sobretudo nas horas de maior concentração. As demandas burocráticas que chegam de repente também são nefastas.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
A excessiva valorização dos prêmios literários, como se eles fossem o atestado incontestável da qualidade de uma obra. Incomoda-me também a busca obstinada de algumas pessoas pela fama, como se esta pudesse lhes garantir um possível lugar de destaque na história da literatura.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Eu poderia mencionar vários, mas deixo aqui duas autoras já falecidas: a mineira Henriqueta Lisboa e a portuguesa Maria Velho da Costa. Acho também que se deveria prestar mais atenção na obra de uma poeta octogenária que continua em atividade no Brasil: a amazonense Astrid Cabral.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Um livro imprescindível para mim, hoje, pode não ser o que escolherei daqui a um tempo, nem nenhum dos que me foram imprescindíveis tempos atrás. Digo que pelo menos dois me foram imprescindíveis ao longo do confinamento pandêmico: Lojas de canela, de Bruno Schulz, e Obra breve, de Fiama Hasse Pais Brandão. Mas nunca deixo de voltar ao livro Ficções, de Jorge Luis Borges. Quanto ao descartável, prefiro não mencionar nenhum título. Descarto, de cara, todos os livros descartáveis.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
O descuido com a linguagem e a incapacidade de provocar alguma surpresa em quem o lê.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Acho que tramas políticas, realismo explícito e histórias edificantes.

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
Vou citar pelo menos dois cantos (ou episódios) inusitados: quando fui surpreendida pela queda súbita de uma palmeira no jardim durante a chuva e quando encontrei um morcego sobre o tapete vermelho que fica sob a mesa de meu escritório.

• Quando a inspiração não vem…
Vou cuidar das plantas e colocar comida para os bem-te-vis que sempre me visitam quando menos espero.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Nossa! Teria uma lista enorme. Mas escolho aqueles que poderiam me divertir durante o café: um, que já morreu, seria Georges Perec; o vivo, Alain Mabanckou, autor congolês que, além de escritor incrível, é muito charmoso e bem-humorado. Tomar um café com a Paulina Chiziane também seria um deleite.

• O que é um bom leitor?
Concordo com Alberto Manguel quando ele disse que “a leitura pressupõe certa desobediência”. De fato, ler não é um ato de servilidade. O bom leitor é aquele que não segue apenas as diretrizes sugeridas (ou explicitadas) pelo escritor, dando-se a liberdade de percorrer o livro também de viés, aos saltos ou do jeito que bem entender. Dessa maneira, reinventa o que lê.

• O que te dá medo?
Antes, eu tinha medo de baratas. Atualmente, tenho medo da espécie humana, que está destruindo o mundo e a si mesma.

• O que te faz feliz?
Viver a ilusão da felicidade.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
A dúvida é se o que escrevo tem alguma relevância para o mundo. A certeza é de que a escrita tem uma grande relevância para mim, já que preciso dela para me manter viva.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Sou muito atenta às possibilidades da linguagem e aos artifícios da construção. Me preocupo com os usos que posso fazer disso para tentar trazer à tona o que se esconde nas dobras da realidade visível ou capturar o que de incomum existe nas coisas comuns.

• A literatura tem alguma obrigação?
A de ser livre para se desviar da obrigação de ter qualquer obrigação.

• Qual o limite da ficção?
A ficção não tem limites, a não ser quando ela os inventa para si mesma.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Eu o levaria à casa de minha personagem e mestra Zenóbia, que costumo descrever como minha zoóloga/botânica de estimação.

• O que você espera da eternidade?
Que seja provisória.

Pequena enciclopédia de seres comuns
Maria Esther Maciel
Todavia
112 págs.
Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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