A predileção pelos doidos

Samir Machado de Machado: “Minhas dúvidas são a única coisa de que tenho certeza”
Samir Machado de Machado, autor de “O crime do bom nazista”. Foto: Basso Cannarsa
01/05/2025

Mesclando humor e política, o gaúcho Samir Machado de Machado tem feito sucesso entre críticos e leitores. Em anos recentes, o autor ganhou duas vezes o prêmio Jabuti na categoria “Melhor Romance de Entretenimento”: em 2021 por Corpos secos, coescrito com Luisa Geisler, Natalia Borges Polesso e Marcelo Ferroni; e em 2024 por O crime do bom nazista, uma homenagem ao romance policial que mistura baronesas misteriosas e espiões comunistas em meio à perseguição nazista aos gays da Berlim dos anos 1930.

Nascido em Porto Alegre, em 1981, Samir começou a escrever muito cedo, conforme revela nesta edição do Inquérito. “Aos oito anos, comecei a escrever (e desenhar) histórias, e nunca mais parei”, diz. “Mas a ideia só se solidificou mesmo quando fiz a oficina de escrita criativa do professor Luiz Antonio de Assis Brasil.”

Desde então escreveu os romances Quatro soldados, Homens elegantes (prêmio Açorianos de Literatura 2017) e Tupinilândia (prêmio Minuano de Literatura 2019). Samir escreve ficção preferencialmente pela manhã, porém, diz que é na “na revisão e na reescrita que tudo começa a ficar divertido”. Para ele, “todo escritor deveria ler Reparação, do Ian McEwan”. Os leitores também devem prestar atenção na literatura do baiano Ian Fraser e do conterrâneo Reginaldo Pujol Filho, sem esquecer da poeta mato-grossense Moema Vilela. A seguir ele revela mais sobre sua rotina e idiossincrasias.

• Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Aos oito anos, comecei a escrever (e desenhar) histórias, e nunca mais parei. Foi a única coisa que fiz de modo contínuo a minha vida toda — ainda que, naquela época, minha ambição fosse especificamente a de criar histórias para o Tio Patinhas. Aos poucos passei a achar que desenhar era trabalhoso demais, e passei só a escrever. Mas a ideia só se solidificou mesmo quando fiz a oficina de escrita criativa do professor Luiz Antonio de Assis Brasil.

• Quais são suas manias e obsessões literárias?
Entre as manias, tenho a de começar todo ano lendo um livro de autor ou temática gay, para poder ter um ano bem gay; e a de começar todo livro com anotações esparsas em alguma caderneta, até as ideias começarem a aglutinar. Entre as obsessões literárias: mapas, labirintos, duplos opostos. Um amigo já percebeu também que em todos os meus livros há alguma ênfase em um doce, sejam os macarons em Homens elegantes, os refrigerantes regionais em Tupinilândia, ou as caixas de Bis branco em Corpos secos. Não foi à toa que acabei tendo diabetes.

• Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Um pouco de ficção, um pouco de não-ficção, o importante é não ficar um dia sem ler.

• Se pudesse recomendar um livro ao presidente Lula, qual seria?
Acho que ele iria gostar de ler o meu O crime do bom nazista.

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
De manhã, entre 6h e 12h, com uma xícara de chá ou de café passado, e um pratinho com uma porção de biscoitos (com certa preferência por sabor limão ou pelo amanteigado da Piraquê).

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
De tarde, entre 15h e 18h, numa cafeteria (eu trabalho em casa, então sair de casa em algum momento é importante), com uma xícara de café e um docinho para acompanhar.

• O que considera um dia de trabalho produtivo?
Quando eu consigo produzir ao menos duas laudas de ficção.

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
A reescrita. A primeira versão de tudo é sempre dificultosa, lamacenta, tateando no escuro. E o resultado é sempre ruim. Mas uma vez com o texto mapeado, é na revisão e na reescrita que tudo começa a ficar divertido.

• Qual o maior inimigo de um escritor?
A primeira coisa que me ocorre responder é “procrastinação”, mas se estou pensando no meu texto, estou escrevendo ele, apenas não estou digitando. E pela convivência com outros escritores, percebo que a insegurança em relação às próprias capacidades, somada a uma excessiva preocupação em satisfazer qualquer outro leitor que não a si mesmo, costumam ser os maiores inimigos. Isso, e os boletos do mês.

• O que mais lhe incomoda no meio literário?
Sinceramente, a maioria dos problemas do meio literário são variações dos mesmos problemas que qualquer outro meio artístico ou profissional possui. Eu tento entender como o sistema literário funciona e busco navegar nele da melhor forma possível, de modo a poder me concentrar na única coisa que me interessa, que é criar.

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Na prosa, o baiano Ian Fraser e o gaúcho Reginaldo Pujol Filho. Na poesia, a mato-grossense Moema Vilela.

• Um livro imprescindível e um descartável.
Todo escritor deveria ler o Reparação, do Ian McEwan. Ninguém precisa ler a Prosopopeia, de Bento Teixeira, um livro do qual não creio que ninguém gostou nos últimos quatrocentos anos.

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
Toda arte é política, mas quando o autor parece mais interessado em defender sua tese do que construir sua ficção, há casos em que seria melhor ter escrito logo um ensaio.

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?
A crise de meia-idade do heterossexual contemporâneo.

• Qual foi o lugar mais inusitado de onde tirou inspiração?
Minha inspiração parece sempre vir de lugares inusitados. Viajar me inspira, caminhar na rua me inspira, o contato com pessoas diferentes me inspira, o contato com gente doida me inspira mais ainda.

• Quando a inspiração não vem…
Não conheço isso.

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
Robert Louis Stevenson, Umberto Eco e Erico Verissimo.

• O que é um bom leitor?
Um leitor que julga o livro pelo que ele se propõe a ser, e não pelo que gostaria que fosse.

• O que te dá medo?
Evangélicos neopentecostais.

• O que te faz feliz?
A companhia do meu namorado, ou um café entre amigos.

• Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
Minhas dúvidas são a única coisa de que tenho certeza.

• Qual a sua maior preocupação ao escrever?
A de que estou sempre a duas páginas de perder o interesse do leitor, e de que preciso me entreter com minha própria escrita — se não estiver me dando prazer escrever, não posso esperar que vá dá prazer ao leitor em ler.

• A literatura tem alguma obrigação?
A única obrigação da literatura é a de se fazer interessante ao leitor. Todo o resto é acessório.

• Qual o limite da ficção?
Dentro do espaço ficcional, não há nenhum limite.

• Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
Quando assistimos E.T., minha mãe me fez jurar que se um dia eu encontrasse um, deveria levar até ela.

• O que você espera da eternidade?
Não crio expectativas para o que está fora do meu alcance, prefiro lidar com um problema por vez.

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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