Volta à aldeia

Conto Inédito de Giovana Madalosso
Ilustração: Joana Velozo
30/04/2020

Eu já sabia que essa viagem seria mais fácil. Não precisaria subir o rio sentada na tábua de uma canoa, nem avançar horas pela mata fechada como da outra vez. O governo estendeu um tapete vermelho-sangue para os madeireiros e mineradores passarem, e é por essa estrada que avanço agora, no banco do passageiro, ao lado de um guia que contratei para me levar até a aldeia e que prefere ouvir Beyoncé ou mesmo a voz do aplicativo a falar comigo. Não condeno o rapaz. Quem quer ouvir o papo de uma pessoa assolada pela crise da meia-idade? Nem eu mesma, tanto que vim para cá fugir da terapia, dos amigos, de qualquer anteparo da minha conversa para encontrar uma imagem. Ou melhor, uma visão.

Foi o que tive na primeira vez que vim à Amazônia. Na época eu era uma advogada de 30 anos que andava pelo fórum como se tivesse pedras nos bolsos do tailleur. Durante a cerimônia de ayahuasca conduzida na aldeia, enxerguei que só deixaria de afundar se largasse o direito para investir no que sempre gostei, a fotografia. Pode parecer uma conclusão óbvia, e de fato foi, mas talvez a maior fraqueza humana seja essa, enxergar tanta coisa, mas quase nunca o que pula como mola à nossa frente. Tendo enxergado, mudei de carreira, e vivi quase 20 anos fotografando, criando uma filha com meu companheiro e caminhando sobre pedras, até que elas voltaram a pesar nos meus bolsos.

Registrar a situação no Acre não foi um pretexto. Quero ver o que esses anos fizeram com a reserva em que estive. Claro que não espero o idílio de então, mas também não esperava essa anunciação sinistra, terra queimada por todos os lados. Pergunto para o guia se os incêndios foram causados pelo aumento de temperatura, soube que há poucos dias os termômetros da região bateram inéditos e inacreditáveis 46 graus. Ele diz que não, incêndios espontâneos na Amazônia são uma invenção, a região é úmida demais para pegar fogo por conta própria. Ao menos por enquanto. Então quem?, pergunto. Ele dá uma risada estranha. Todo mundo. Tá tudo liberado, dona. E em seguida aumenta o som.

Logo percebo que estamos chegando. Eu sei porque reconheço a árvore que se ergue em meio aos escombros das outras, mais de 80 metros de altura, tão imponente que devem ter poupado seu pescoço da lâmina ou do fogo por medo. Ou por incapacidade de carregá-la. Gosto de pensar que me esperou esse tempo todo. Da mesma maneira que o rio me esperou, incansável contornando a aldeia. Se alguns elementos permanecem os mesmos, outros mudaram, como a margem, antes virgem, agora ocupada por um estacionamento.

Digo para o meu guia que pode ir embora, já estou entregue, e me acomodo com os indígenas na canoa. A travessia é rápida. Em menos de dez minutos chegamos ao outro lado. A primeira coisa que vejo é o shuhu. Sou péssima para memorizar nomes, mas desse me lembro porque na época mentalizei as cinco letras, e a palavra ficou na minha cabeça. O espaço central da aldeia continua o mesmo, sem paredes, teto de palha, alguns troncos para sentar, redes por todos os cantos. É ali que Bira me recepciona, conferindo meu nome, a mão estendida na minha direção.

Ele conta que quem iria me receber era a pajé, mas ela não pôde vir porque está acompanhando o preparo da medicina. Acho estranho, ela certamente não se lembra de mim, por que me daria essa honra? Talvez porque eu seja fotógrafa e tenha dito isso ao agendar a visita, penso, sem que isso me convença. Seja o que for, não tenho do que reclamar. Bira me serve uma tapioca, um suco. Depois me conduz até o alojamento, uma palafita agradável ao lado do shuhu. Largo minha mochila e o meu saco de dormir, pegando apenas a câmera. Digo para ele não se preocupar comigo, vou andar sozinha, fazer umas fotos.

Pego um caminho que conduz ao centro da aldeia. Lá está o descampado, as casas de madeira e pau a pique no entorno. Crianças correndo descalças, mulheres ralando mandioca, meninas trançando palha. Certas coisas mudaram, o que está a salvo do tempo? Mas as diferenças são tão sutis que tenho a sensação de estar num jogo de sete erros. Parabólicas em telhados onde não havia nada. Celulares em mãos antes vazias. Lá longe, uma construção vistosa de alvenaria que deduzo ser uma escola ou a associação dos indígenas. Porém, quando começo a fazer fotos das pessoas, sinto que a mudança vai além de algumas diferenças aparentes. Há algo turvo no ar, no acanhamento das meninas para as quais aponto a câmera, nos seios cobertos, na forma como uma mulher com quem converso aperta a medalha em seu pescoço. Também estranho quando vejo, pelo zoom da câmera, a pajé se aproximar. Tinha 30 anos quando a conheci, não deveria estar aparentando 60 como agora. Não só o desgaste chama a minha atenção, como a mudança no rosto. Desde adolescente tenho o hábito de separar as pessoas em quatro grupos, de acordo com as suas feições. Por mais que envelheça, ninguém migra de um grupo para o outro, já que meu critério é baseado na simetria dos traços e isso não costuma mudar. Mas a pajé transformou-se a ponto de pular para o grupo dois. Tanto que só a reconheço porque sou boa fisionomista e porque ela vem sorrindo em minha direção.

Me dá um beijo, me convida para sentar por ali. Quer saber se fiz boa viagem, se fui bem recebida. Depois pergunta se minha visita tem alguma motivação especial. Conto da minha primeira vinda, da visão que tive, do quanto foi marcante tomar ayahuasca naquele descampado com quase cem pessoas cirandando em volta do fogo. Ela dá um sorriso triste e diz que as coisas mudaram um pouco de lá para cá, eu não reparei? Olho ao meu redor. Vejo a noite começando a cair, alguns indígenas caminhando em direção à casa de alvenaria com um livro na mão. Um livro preto na mão. De repente, algo fica nítido, como se eu ajustasse o foco. Então é isso, digo. Ela balança afirmativamente a cabeça. Depois cruza as pernas, ajeita o bracelete de miçangas. Conta que sofreu para se tornar a primeira pajé mulher do seu povo. Teve que ficar nove meses isolada na floresta para provar que era forte o bastante. Achava que depois dessa, podia com qualquer coisa. Mas daí vieram os evangélicos. E em poucos anos fizeram com eles o que os jesuítas não conseguiram fazer em um século. Como?, pergunto. Com o empurrãozinho da miséria, diz. Em seguida descruza as pernas, aponta para um casebre perto de nós. Tá vendo a marca? Já está quase noite, mas consigo ver a parede manchada, apodrecida até um metro e meio do chão. O aquecimento trouxe as enchentes. E as enchentes levaram tudo. Na pior delas, os evangélicos apareceram com comida, colchão e eletrodomésticos pra todo mundo. Ela aponta para o descampado. Quando vi um helicóptero pousando aqui cheio de televisores, entendi que já era. Como eu ia competir com a programação da Record? Quero dizer alguma coisa, mas não consigo, nada razoável me ocorre. Ela apoia o rosto nas mãos, os cotovelos nos joelhos. Desejo fotografá-la desse jeito, mas claro que não cometo a indelicadeza de pegar a câmera. Mas nem tudo tá perdido, ela diz depois de um tempo, levantando o rosto. E explica que parte da comunidade segue a tradição, fazendo a cerimônia, que começará em breve.

Seguindo seu conselho, levanto e vou até o shuhu, como alguma coisa leve, uma fruta que encontro por lá. Depois pego um agasalho e uma lanterna. Sigo suas coordenadas, cruzando o descampado na direção oposta à igreja. Dali pego o único caminho possível, uma tripa de terra que avança morro acima. Preocupada em não pisar numa cobra, não penso em nada, só sigo em frente, até que escuto tambores e um violão. Logo descubro que o som vem de uma pequena clareira. Ali encontro umas 15 pessoas em torno do fogo. Entre elas a pajé, sentada atrás de uma mesa portátil, onde descansa um jarro com a boca coberta.

Cumprimento ela e o Bira, esse só com um aceno, já que está tocando tambor. Depois, sento em volta da fogueira, observo os rostos iluminados pela chama. A maioria tem a pele toda craquelada, velha guarda da aldeia. Um deles reconheço da minha outra vinda, quase não mudou, nariz largo e queixo quadrado, típico grupo quatro. Alguns são da minha idade ou um pouco mais novos e diversos são jovens, talvez com tesão demais para aguentar a virgindade pré-matrimonial exigida pela Assembleia de Deus.

De repente, como se ouvissem um comando audível só para eles, os indígenas começam a formar uma fila diante da mesa. Entro no fim. Quando chega a minha vez, a pajé estende-me um copo cheio e diz que se vim com um propósito, devo pensar nele. Respiro fundo e viro a ayahuasca, lembrando como é amargo o seu gosto. Depois sento e faço o que ela recomendou, virando os olhos para dentro.

Não preciso de muito esforço para enxergar o que me trouxe até aqui. Perdi minha mãe, depois meu pai. Minha filha formou-se e foi morar em outro país. Sobramos eu e meu companheiro num casamento acabado que não largo por medo de envelhecer sozinha. Vale a pena começar de novo quando o próprio corpo anuncia o fim, solapando os hormônios e secando a vagina? Acima de tudo, vale a pena começar de novo quando sabemos que as coisas sempre terminarão mais ou menos da mesma maneira? No momento tudo o que sinto em relação a isso é enjoo.

Levanto e vou andando até a borda da clareira, onde deixo as tripas. A pajé se aproxima, pergunta se estou melhor. Digo que sim e é verdade, tenho a sensação que jorrei tanto, mas tanto, que também larguei no chão um pouco da minha angústia. Volto para o meu lugar, fico ouvindo a música. Embora não entenda a língua, percebo a simplicidade das letras, as palavras que se repetem sem formar estrofe nem verso, um sopro para que cada um vá na direção que quiser. Tento me soltar, me deixar levar pelo ê kanore kanorê, e depois de um tempo acho que deu certo, que o cipó está batendo, porque começo a ouvir vozes distantes, o que estão querendo me dizer? Até que escuto com clareza: ao Senhor suplico. E agora em coro: rendo-me ao Senhor. De repente me sinto aviltada, como alguém que comprou ingresso para o Municipal e, bem na hora que o espetáculo começa, um trio elétrico desponta nos arredores. E um trio elétrico mesmo, porque ao contrário do nosso acústico, o culto está amplificado por microfones, por alto-falantes. Agora é que não vou conseguir ter visão nenhuma, só imaginando as preces, as mãos voltadas para cima, os obreiros recolhendo o dízimo.

Olho para o lado, me perguntando o que devo fazer. Reparo que, quanto mais alto cantam os fiéis, mais alto cantam os pagãos, o diafragma da pajé se dilatando, os dedos do Bira surrando o tambor. Também grito mais alto, baetê baetê, tentando silenciar o cântico, reinar na onda sonora, mas logo perco o fôlego e, no silêncio imposto pelo meu corpo, entendo que não estamos cantando contra, mas com eles, e incentivados por eles. As nossas palavras como um segundo coro. E quando também me entrego a esse estranho mashup, mudando nada além da intenção da minha voz, é como se aquelas pedras rolassem do meu bolso. Fico leve, talvez por unir-me ao todo. E por que não me uniria? Sou igual a eles onde o sopro encontra as cordas, onde a rotina encontra o medo. A única diferença é que os fiéis procuraram o pastor para entrar em contato com Deus, para ter algum alívio, talvez porque nesse momento só um par de braços não seja o suficiente para eles. Para mim é. Tanto que agora não peso nada, não sou nada e, não sendo nada, tenho a sensação de que posso ser tudo ou qualquer coisa, de que flutuo, para longe e para perto do fogo, flutuo. Até que exausta pelo que nunca tinha experimentado, pego no sono.

Acordo com aterrissagem completa. Dor na lombar, cara amassada, boca com gosto de vômito. O sol já nasceu, meus companheiros estão se levantando, juntando seus objetos. A pajé se aproxima de mim com o jarro vazio. Agradeço pela noite, trocamos algumas frases, o pouco que cabe nessa hora do dia. Depois comemos o desjejum servido por uma garota, farinha na folha de bananeira. Aos poucos os indígenas vão indo embora, começo a caminhar atrás deles em direção ao centro da aldeia.

Num certo momento, paro para ver a paisagem do alto, uma vista que ainda não conhecia. Para lá da margem do rio, alguns caminhões já circulam, as escavadeiras se erguendo como bocas famintas. Sempre pensei que a cidade é mais bonita à noite, quando a escuridão atenua seus defeitos. Nunca imaginei que um dia o mesmo se aplicaria à floresta. Faço algumas panorâmicas. Depois sigo andando, rememorando o que passei. Não tive a visão que queria, talvez porque peguei no sono, sem ter bebido a segunda rodada do chá. Ou talvez porque já saiba a resposta.

Giovana Madalosso

Nasceu em Curitiba (PR), em 1975. É autora de A teta racional (livro de contos finalista do Prêmio Literário Biblioteca Nacional), e dos romances Tudo pode ser roubado (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura) e Suíte Tóquio.

Rascunho