Quarentenas

Quatorze breves histórias em torno da quarentena, do coronavírus e das novidades que o mundo enclausurado nos oferece
Ilustrações: FP Rodrigues
19/09/2020

1.
Quando viu a patroa de cama, Elba deu prova de sua infinita fidelidade e cuidou de dona Mercedes como de uma filha. Fez-lhe canjas, comprou-lhe remédios, tirou-lhe a temperatura doze vezes por dia. Acabou pegando a doença e deve tê-la espalhado para muita gente no ônibus de volta para casa.

Dona Mercedes, por sua vez, ficou inconsolável quando Elba morreu. Ela sabia que tinha trazido o vírus da Itália, depois de uma bela viagem pelos vinhedos da Toscana, e que contaminara Elba. Não se pode dizer que não tenha sido generosa. Mandou coroa de flores e pagou caixão.

Mas o remorso continua torturando dona Mercedes. Tanto que, cada vez que ela passa a própria roupa, cada vez que ela faz a própria comida, derrama uma grossa lágrima. E, entre soluços, pensa: “Será que a filha da Elba não pode vir dar uma ajudinha?”

2.
Mimi tinha visto na tevê que, na quarentena da Itália, as pessoas estavam cantando nas sacadas. E Mimi sempre quis ser cantora. Então preparou todos os detalhes com esmero: escolheu uma ária (“Sí, Mi Chiamano Mimí”, da ópera La Boheme, de Puccini), decorou a letra, ensaiou os gestos no banheiro, preparou o som, colocou seu melhor vestido e apertou o play.

Mimi ainda está em dúvida se os tomates, laranjas, pepinos, bananas e até latas ervilha que foram atiradas em sua sacada foram um pagamento ou uma crítica.

3.
O pastor Sales, da igreja pentecostal “Na Arca de Noé Sempre Cabe Mais Um” está preocupado. De meia em meia hora tira a própria temperatura. A febre não passa.

“Será que peguei a coisa de algum fiel?”

Ele deita em sua cama e olha para o espelho do teto.

“E se eu desse uma benção em mim mesmo?”

Ele ri da própria piada por um segundo, mas logo volta a ficar tenso. Lembrou que Marilene, cabeleireira devota, estava muito pálida no último culto. E ela beijou seus dedos depois de lhe entregar um envelope com todo seu aviso-prévio e dizer “Se Deus está conosco, não há nada a temer”.

O pastor Sales esfrega a mão na calça até ela ficar vermelha.

Ilustração: FP Rodrigues

 

4.
— Martim, o que são todas essas folhas de papel com barbante na ponta?

— São minhas pipas, mãe. Eu vou empinar elas quando acabar a quarentena.

— Mas a quarentena ainda pode demorar muito.

— Quanto?

— Não sei.

Martim fica sem saber o que fazer. Mas, de madrugada, sonha com a solução e se levanta.

Quando a mãe de Martim acorda, vê que todas as pipas estão amarradas nos ventiladores da casa e dançam feito doidas no ar.

Ilustração: FP Rodrigues

 

5.
Isabella é médica e trabalha num hospital que atende pacientes da pandemia.

As pessoas do seu edifício, quando a veem chegando, sobem pelas escadas, aceleram o passo, desaparecem.

Isabella pega o elevador de serviço e vai para seu apartamento. Tem um quarto e um banheiro só para ela, e evita chegar perto do filho e do marido, que só a veem à distância.

Em vez de receber parabéns, joinhas ou sorrisos por seu esforço, Isabella recebe olhares de medo e raiva. Esses dias até passaram um bilhete por baixo de sua porta. Dizia: “Mude-se deste prédio. Você vai matar todos nós, sua assassina.”

6.
Um rapaz chora na janela. Uma semana atrás, ele gritou para o médico:

— Dá cloroquina pro meu pai!

— Não é assim —, explicou o médico — nem sempre se deve usar cloroquina. Ela pode acelerar o coração e causar um enf…

— Papo furado! Você deve ser de esquerda. O pessoal de esquerda é contra a cloroquina porque o presidente é a favor. Tem que dar cloroquina pro meu pai. Você é um médico ou um assassino?

— Esse remédio não é uma uma cura. Ainda faltam estud…

— Olha o meu pai. Olha! Pior do que ele está, só morrendo.

— Não vamos exagerar. Existem outros trata…

O rapaz perde a paciência e sai batendo a porta.

Uma hora depois, quando estava visitando o pai, deu-lhe uma grande dose de cloroquina que comprou na farmácia.

Agora o rapaz olha pela janela e chora de remorso. Ele pensa que, se tivesse começado a dar a cloroquina mais cedo, o pai ainda estaria vivo.

Ilustração: FP Rodrigues

 

7.
Depois de dar banho em Rita, sua mãe foi procurar uma calcinha para vesti-la. Mas não achou nenhuma.

— Rita, você sabe onde estão suas calcinhas?

— No meu hospital.

— Você tem um hospital?

— Tenho. Por causa da covid.

— Onde ele fica?

— Ali.

Então a mãe se abaixou e olhou embaixo da cama. Lá estavam todas as bonecas de Rita. E havia uma calcinha no rosto de cada uma.

8.
Vivi Carvalho está em quarentena. Mas é contra. Ela acha que as pessoas têm que sair para as ruas. Muitos morrerão, é verdade, mas o país não pode parar. No final das contas, vamos perder apenas um ou dois por cento da população, e a maioria será de velhos.

Vivi acredita no direito inalienável de ir e vir do cidadão. E lembra que a igreja defende o livre arbítrio. Por isso diz que cada um, perante a lei e Deus, deve ter o poder de decidir se quer ficar em casa ou não.

Vivi não sairá de seu apartamento até que inventem uma vacina. Mas seus funcionários estão trabalhando a todo vapor na Carvalho & Filhos, uma próspera fábrica de urnas funerárias (ou, como diz o povo, caixões).

O slogan da empresa é: “Carvalho & Filhos, com você até o fim”.

Ilustração: FP Rodrigues

 

9.
Linda Lux é uma garota de programa. Se bem que ela prefere o termo microempreendora do setor quartiário, porque seu trabalho acontece no quarto. Linda Lux rapidamente se adaptou aos tempos da quarentena e passou a trabalhar apenas com videochamadas. O sujeito (ou sujeita) liga de seu próprio lar, ela atende em casa e faz o que cliente quiser por uma hora. O pagamento é feito antecipadamente, por transferência bancária. Tudo rápido, prático, limpo e objetivo.

As coisas ficaram muito mais fáceis para Linda Lux. Ela não tem mais que aguentar cheiros horríveis, suores, salivas e gosmas. Não tem mais que beijar homens de hálitos insuportáveis, nem precisa tocar em suas peles secas, branquelas e cheias de sardas senis.

Ela continua cobrando o mesmo que antes. Mas a procura cresceu muito. Linda Lux diz que nesta quarentena só ela e o iFood é que saíram ganhando. E completa: “Estou até pensando em agenciar umas meninas e fundar uma empresa. Já tenho até o nome: iFodo.”

10.
Aproveitando a moda, Brasilino decidiu fazer máscaras para vender. Colocou a mãe, a esposa e até as filhas para costurarem.

As máscaras têm temas variados. Listradas, com bolinhas, rosas para meninas, azuis para meninos, vermelhas para uns, verdes-e-amarelas para outros, há umas com os dizeres “Fora, Bolsonaro!” e outras com “É só uma gripezinha, mas eu me cuido”.

Para fazer propaganda de seu produto, Brasilino e sua família só andam pelo bairro com suas máscaras.

A ideia deu muito certo. Brasilino ganhou bastante dinheiro. Para comemorar, até chamou um monte de amigos para um churrasco neste domingo. “E aqui ninguém vai usar essa frescura de máscara, pô!”

11.
Vivinha brincava de boneca no chão da sala enquanto os pais viam o telejornal. O telejornal dizia que mais de um milhão de brasileiros já tinham sido contaminados e que mais de 50 mil pessoas já tinham morrido.

Os pais pensavam que Vivinha não prestava atenção no que os jornalistas diziam. Mas só até ela pegar uma caixa de sapatos, colocar sua boneca ali dentro e começar a brincar de enterro.

12.
Numa janela do edifício em frente há um sujeito que está há quarenta dias, atrás das cortinas, usando um telescópio possante para bisbilhotar a vida alheia. E a cada dia ele descobre, ou inventa, uma história para cada uma daquelas janelas.

Hoje finalmente ele vai parar. Completa quarenta textos e fazer mais de quarenta numa quarentena não parece certo. Há que se respeitar o nome das coisas.

Ele desmonta o telescópio lentamente, guarda-o com cuidado na caixa e, aliviado, diz para si mesmo que por um bom tempo não quer mais pensar em doença.

Mas aí tosse.

13.
O pai de Matheus trabalha num supermercado. Quando ele chega em casa, toma um banho comprido e depois janta sozinho.

Matheus está proibido de subir nos ombros do pai e acabaram-se os concursos de arroto.

A única coisa boa é que sua mãe agora dorme no quarto com ele. E o pai dorme sozinho no quarto do casal.

Assim que a mãe apaga a luz, Matheus pergunta:

— Será que o pai não gosta mais da gente?

A mãe pensa um pouco e responde:

— Não, meu filho. É o contrário.

14.
“Não existe problema, existe é oportunidade mal aproveitada”, diz uma plaquinha que fica na parede da sala de Waldomiro.

E ele está aproveitando a oportunidade.

Waldomiro vende vários remédios infalíveis contra a covid-19.

Por exemplo, há uma planta que solta uma fragrância que mata o vírus no ar. Pode parecer um cacto comum, mas ele garante que se trata de uma rara planta da Coreia do Sul, que acabou com a peste por lá. Cada vaso: R$ 1.000.

Há também um unguento para passar sobre a pele que mata o vírus ao menor contato. Pela cor e pelo cheiro, alguém pode pensar que se trata de álcool em gel misturado com suco de uva, mas é o produto chinês que venceu o coronavírus em Wuhan. A embalagem de 100 ml custa R$ 338.

Saindo dos preventivos e indo para os curativos, Waldomiro oferece pastilhas neozelandesas que acabam com o vírus se ele estiver nos sete primeiros dias. O gosto, fique tranquilo, é igualzinho ao do Sonrisal. Preço: R$ 400 o tubo com 10 pílulas efervescentes. Importante: beba antes da última bolha subir.

E, para quem já está com tosse há bastante tempo, Waldomiro manda por correio, em embalagem reforçada e envolta em plástico-bolha, um xarope espetacular usado num asilo de monges beneditinos na Itália, onde não houve uma morte sequer. Em nome da honestidade e da completa transparência, o comerciante informa que o xarope tem um sabor pouco agradável, que parece vagamente uma mistura de óleo de fígado de bacalhau com limão. Aos reticentes, Waldomiro lembra em seu anúncio (veiculado nos mais respeitáveis sites de apostas) que: “Mais vale o amargo do remédio que o amargor de perder um ente querido. Este poderoso elixir custa R$ 1.500, o que pode parecer caro. Mas uma vida não tem preço”.

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

Rascunho