Poemas de Prisca Agustoni

Leia os poemas "A HORA ZERO", ""
Prisca Agustoni, autora de “O gosto amargo dos metais”
29/01/2015

Prisca Agustoni (1975) é suíça de nascimento, mas mora no Brasil desde 2003. A relação com a literatura está presente desde as primeiras escolhas universitárias, ainda na Suíça onde se forma em literaturas hispânicas e filosofia, até os dias de hoje. Desse modo, algumas referências iniciais são: César Vallejo, Alejandra Pizarnik, Octavio Paz, García Lorca, Luis Cernuda.

Nos múltiplos binários entre poesia e crítica ou crítica e poesia, Prisca segue desempenhando o papel de professora na Universidade Federal de Juiz de Fora e, no plano mais criativo, o de escrever poesia. Contudo, além dessas duas atividades, há ainda uma terceira via — a de tradutora, que segue paralela às demais. Traduzir, ponte entre culturas, trabalhar a língua, um quebra-cabeça nem sempre fácil, onde jogo, necessidade, impossibilidade e invenção são os elementos principais. Do italiano para o português é possível lembrar os nomes de Elisa Biagini, Fabio Pusterla, Milo De Angelis, Valerio Magrelli, do francês Julien Burri, do espanhol Jenaro Talens, Alejandra Pizarnik, Alfonsina Storni. E, ainda, do português para o italiano Paula Tavares, e outros poetas contemporâneos brasileiros. Um espaço onde as línguas se misturam, cada uma com a sua singularidade. A escritura como um espaço híbrido, um rastro da sua proveniência que lhe propiciou um amplo leque de relações e de escrituras possíveis. Com efeito, além de traduzir de uma língua para outra, uma grande trama de fios, Prisca Agustoni também escreve nesses quarto idiomas e se autotraduz.

A experiência da autotradução está presente nos poemas escolhidos por ela especialmente para esta edição do Rascunho. Todos inéditos em português. A poesia para ela nasce como uma voz, uma escuta interior (“uma voz vinda de outro lugar”). Quem sabe um enigma? É um movimento de atenção, um estado de alerta para os detalhes, como fica evidente na leitura dos textos abaixo. São temas recorrentes na sua escritura, mesmo perpassando por várias línguas, que operam questões importantes para a contemporaneidade: a condição do feminino, na vida pessoal, coletiva e histórica; a ideia de limiar, de limite, de fronteira seja social, linguística e moral, um território também da psiché; o encontro ou desencontro com o outro, espaço primordial de transformações internas e externas. Entre as várias publicações de Prisca Agustoni, destaque para a coletânea que reúne boa parte de seus textos poéticos, Poesie scelte (2000-2012), publicada em 2013, com o auxílio da Fundação Suíça para as Artes Pro Helvetia. Como o leitor poderá perceber os poemas abaixo tratam dos detalhes, do que restou depois do acontecido. Trata-se de um assalto numa casa. E depois? Quais os rastros e vestígios dessa violência? Um recomeço nos destroços?

A HORA ZERO

1.
após dar três voltas
na chave, hermética, a porta
de entrada fica ali, branca
e pura pomba da asa cortada
a insinuar o voo — un vol
que havia, a vida que havia

antes que o chão não fosse
tição ardente sob os pés

ou tapete de ladrilhos
numa igreja sem fiéis

2.
os dedos revistam misturam
cachecol com meias
deixam atrás de si
no corredor

um batalhão de objetos inermes
horas viradas sem medo
detritos de casas derribadas
após o terremoto

e figura de homem exangue,
no chão

perdidos para sempre os botões da camisa

3.
enquanto apalpam rendas e sutiãs
na terceira gaveta
sinto-as descer ávidas, as mãos
em mim
ao longo da nuca
percorrem as vértebras
redesenham as curvas
tropeçam no fêmur

até que apaga-se a vontade
e jogam-me no chão

boneca,
cuja mola quebrou

…..

L’ORA ZERO

1.
Con tre giri di chiave, ermetica,
la porta d’entrata resta lì,
bianca e pura,
colomba dall’ala tagliata
a insinuare il volo — un vol
che c’era, la vita che c’era

prima che il cotto non fosse
tizzone ardente ai miei piedi

o tappeto di piastrelle antiche
in una chiesa senza fedeli

2.
le dita frugano mescolano
sciarpa con calzini e lasciano dietro di sé
nel corridoio

un reggimento di oggetti inermi
intere ore trascorse senza paura
detriti come case diroccate
dopo il terremoto

o figura d’uomo morto,
per terra

persi per sempre i bottoni alla camicia

3.
mentre palpano pizzi reggiseni e merletti
nel terzo cassetto
le sento scendere avide, le mani,
su di me
lungo il collo
percorrono le vertebre
ridisegnano le curve
incespicano nel femore

finchè scema la voglia
e mi gettano a terra

come una bambola
la cui molla s’è incagliata

Prisca Agustoni

Nasceu em 1975 na Suíça. Estreou na poesia em 2000 com Inventário de vozes. Também tradutora, ensaísta e professora de literatura italiana e comparada na UFJF, de Minas Gerais, escreve diretamente em português, italiano e francês. Casa dos ossos, seu mais recente livro, foi semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura de 2018.

Rascunho