Peg Pag

Leia o trecho do novo romance de Alonso Alvarez
Ilustração: Tereza Yamashita
01/05/2022

1.
(Quarta-feira, 20h06)

Rubem Glück estava com pressa, mas evitava parar na vaga preferencial. Fazia parte da regra não infringir leis e nem chamar a atenção, pois, como sempre, chegava silenciosamente dirigindo a sua Tucson preta. Também não podia ficar dando várias voltas no estacionamento atrás de uma boa vaga. Era recomendável não parar em lugar muito iluminado.

Desceu sem causar suspeita, como sempre, à vontade em seu corpo de trinta e quatro anos, um metro e oitenta de altura, magro, nada atlético, mas saudável; cabelos negros, fartos e aparados. Vestia uma roupa informal e simples, neutra: calça jeans, camisa preta, tênis preto de sola branca. Raramente dava o golpe usando algum tecido estampado, nem gostava de se vestir assim. A tatuagem no antebraço esquerdo estava sempre escondida sob a manga comprida da camisa.

Nessa noite de quarta, dia de jogo, ele não podia demorar. Precisava ser rápido, ágil e ter sorte.

Não deu para escolher outro supermercado. Teve que ser naquele, e logo aquele que sempre estava muito cheio. Por um lado, era bom: a multidão o protegia e seria fácil de encontrar a sua vítima. Mas era a terceira vez no mês que ele se arriscava nesse supermercado perto do bairro onde morava e ainda tinha que responder a um monte de perguntas no caixa antes e após passar os produtos e pagar. Uma das regras o proibia de expor as suas preferências: compra despersonalizada, sem deixar vestígios. Apenas gentil, com um mero “boa-tarde” ou “boa-noite”, um simples “sim” ou “não”. Sem cortesias exageradas, opiniões sobre o tempo, política e futebol.

“É cliente M? CPF na nota? Não vai informar o CPF? Vai querer sacola de plástico? Vai participar do concurso? Vai querer selo de desconto? Vai validar o tíquete do estacionamento? Passou de uma hora? Quer aproveitar e doar os centavos do troco para a caridade?”

“Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não. Não.”

A atendente no caixa o olhou de viés com algum espanto juvenil no rosto. Por um instante, ele se alarmou. Teria sido imprudente?

Se no seu ofício ele é rigoroso para inventar histórias, não seria uma garota com aparelho nos dentes, cabelo preso com tiara, vestindo uma camiseta laranja com a promoção do mês na estampa, que haveria de causar algum embaraço ao seu golpe, havia anos tão bem inventado, planejado e executado. Com certeza, nunca a tinha visto ou ela o atendera antes.

Ela então se percebeu indiscreta, ficou sem jeito e tratou de passar a embalagem com o aparelho de depilar Gillette recarregável Venus Breeze pelo leitor de código de barras. Em seguida, esticou o braço para alcançar o pacote de tofu.

“Tofu?!”

Foi então que ele olhou para as coisas que já havia tirado do carrinho, sem examinar, como sempre fazia (outra regra: passar tudo, sem olhar), e observou que dessa vez aquela compra só poderia ser de uma pessoa vegana. Até gostou da surpresa e da oportunidade de experimentar essa culinária. Virou-se e olhou para a ex-dona do carrinho, ainda entretida na seção das frutas escolhendo bananas.

Mesmo distante, imaginou o aroma das bananas se misturando ao perfume do corpo dela, alvo, jovem, pequeno, frágil e magro, enfiado num vestido curtíssimo, verde-folha, estampado com bolinhas brancas, pendurado apenas por duas alças, finas e brancas, ameaçando escorregar dos ombros salpicado com sardas. Calçava sandálias, sem esmalte nas unhas; o cabelo ruivo, farto e comprido, quase na cintura, solto, que ela afastava com delicadeza para trás das orelhas enquanto escolhia as bananas.

Nunca tinha lhe acontecido isso, mas enquanto a operadora do caixa passava os produtos, ele admirava a jovem vegana que, à distância, misturava ao verde e amarelo o seu vermelho-fogo e se movia com leveza.

Ficou com vontade de conhecê-la. Poderia simplesmente colocar tudo de volta no carrinho, se aproximar e perguntar se o carrinho era dela, que o encontrara abandonado ali por perto. Mas a regra era clara: nada de contato. Nunca. Deveria pagar a compra e ir embora, sem olhar para trás.

Dispensou as sacolas de plástico e colocou toda a compra dentro de uma caixa de papelão vazia que encontrou perto do caixa. Não era muita coisa, mas o suficiente para dar conta da sua fome e deixá-lo alimentado durante o jogo de futebol na TV. E não se incomodou por lembrar que faria a barba, na manhã seguinte, com o aparelho de depilação da vegana do cabelo de fogo.

Recusou os selinhos da promoção e, como sempre, pagou com dinheiro. A regra era nunca pagar com cartão de crédito ou débito; compra sem identificação, sem deixar rastro.

Rubem Glück avistou pela última vez a jovem vegana, que agora olhava ao redor procurando o seu carrinho, com um cacho de banana-da-terra nas mãos. E se foi.

Alonso Alvarez

Nasceu em São Paulo (SP). É escritor, editor e ex-livreiro, fundador da Livraria artepaubrasil. Publicou, entre outros, o juvenil O encanto da lua nova, e o infantil Era uma vez duas linhas. Estreou no teatro, em 2012, com a peça A saga da Bruxa Morgana e a Família Real. O romance Peg pag será publicado em breve pela Iluminuras.

Rascunho