Jana tatuada

Conto inédito de Luciana Viégas
Ilustração: Matheus Vigliar
02/04/2016

Se bem que passada dos quarenta, dona Vasco ainda tinha disposição para correr a região serrana, a zona metropolitana e, agora, a costa sul do estado, de segunda a sexta-feira, oferecendo filmes, tintas, ácidos que entravam na composição dos fotolitos para impressão. Muito antes da moda das malas com rodinhas, arrumava numa bolsa de couro com alça comprida as amostras de poliéster azul, de acetato de cem micra, de solventes, corantes, e mais recentemente não podia deixar de apresentar retalhos de bopp fosco para laminação. Papel vegetal para as páginas impressas a laser em p&b também podia fornecer mas não levava mostruário, que isso qualquer um sabe o que é, principalmente depois que até o Ponto Frio e as Casas Bahia passaram a vender essas impressoras quase profissionais. Apesar da alça da bolsa ser suficientemente comprida, jamais conseguiu chegar a um cliente ou sair da sala do comprador com aquele trambolho transpassado pelo busto. Fazia isso quando chegava em casa, com sacolas plásticas do mercado nas duas mãos.

Todo mundo que lida com qualquer tipo de impressão no Rio, em alguma caderneta, na memória do telefone, num dos cartões de visita em couchê empoeirados numa caixa de sabonete Phebo meio aberta, na borda de uma nota fiscal, sabia. Todo mundo tinha anotado o telefone da Vasco. O pessoal só da serigrafia, com certeza; os artistas, nem todos. Por muito tempo saiu de manhã de Maria da Graça para o escritório da firma que ficava no segundo andar de um sobrado de uma rua estreita, transversal à avenida Marechal Floriano. Chegou a se sentir feliz por chegar ao serviço com as saias e as blusas de gola menos amassadas quando inauguraram a linha do metrô que ia do bairro onde morava até o centro. Gostava de ver o Maracanã quando o vagão corria a céu aberto, antes nem se importava quando ia em pé. Mas de noite, não, na verdade quase sempre nem reparava. Caprichava para chegar ao escritório ainda cheirando a banho, tomar um café no balcão e levantar o riscado opaco da sobrancelha para acender um Vila Rica antes de subir. Depois de alguma catástrofe era tiro e queda: sempre alguém lhe dirigia um comentário. Também sobre a roubalheira do governo, ou a desumanidade de algum judas da vez, ou como tudo muda. Nas segundas-feiras, nem dúvida de que alguém iria falar de acontecimento bizarro que deu no Fantástico ou no Gugu.

A cintura ainda afunilava no lugar mas o rendado indisfarçável na pele do pescoço e das mãos, um inchaço crônico nos dedos denunciavam o prolongado uso de esponjas, sabão, Bombril, outros produtos corrosivos cujos rótulos avisam que foram dermatologicamente testados. As costas alargadas se penduram nas dobras que excedem o bojo do sutiã. Esmalte grosso nas unhas, quase sempre com brilhos cintilantes, uma camada a mais para retocar as lascas. Contudo, por ter os dois dentes da frente ligeiramente separados, bastava um sorriso mal esboçado para lhe desanuviar os olhos apagados. Jaime, muito antes da filha nascer, perguntava rindo se no molde dela tinha sobrado boca pra pouco dente — ele, tão perfeito em tudo, se falou alguma coisa, é porque pelo menos isso ele notou. Como nunca entendeu se era um ataque ou um elogio, respondia, rindo também, que aquela boca era defeito de fabricação.

Muitos clientes nem desconfiavam das mechas finas que colavam no suor da parte de trás da nuca, tingida pelos resquícios de Koleston no cabelo cheio, nem de qualquer de seus demais dotes: durante anos a fio atendeu-os pelo telefone. Recolhia os pedidos quando ligavam, controlava os estoques para não prometer o que não poderia cumprir. Encerrava rápido a ligação quando começavam a querer saber como era ela, elogiando a voz jovem, imagina, a essa altura, concedia prazos para faturamento, aumentava os descontos para os mais pontuais. Mais de uma candidata a auxiliar desbancou, tem certeza disso, só com a presteza com que discava o número dos clientes. Depois que passou a teclar, então, moleza. E não deixava fornecedor atrasar mercadoria. Tudo aqui, ó, batia no canto da testa com o indicador. Ficava chateada de verdade se uma encomenda atrasasse. Nunca se esqueceu de verificar se as duplicatas estavam quites, deixava um aviso para o inadimplente antes de os patrões reclamarem. A ponta de constrangimento, de que não suspeitariam, se dissipava depois que acendia um cigarro e ficava parada vendo a fumaça se espalhar.

Quando os pedidos diminuíam, fazia uma ronda começando pelas gráficas dos municípios vizinhos. Tem que girar, a moenda não pode parar, avisava antes que o gerente viesse lhe perguntar qual a sugestão para brecar a queda do movimento. Acenava com frete grátis para Caxias e Nova Iguaçu. Um vereador amigo de Itaguaí até sugeriu que montassem uma gráfica exclusiva na Prefeitura. Em Angra dos Reis, o pessoal que fazia o material das escolas da prefeitura era chapa. Apesar de ter gente em Macaé, teve que dar um tempo. O sujeito queria porque queria sair mais vezes, jurava que não era casado, tá. Por que cargas d’água inventou de jantarem no motel e nem convidou pra continuarem juntos numa sexta à noite — pra cima de mim?, quero confusão não, e calava sobre o desconforto que foi passar o resto da noite no carro. Despediram-se e Vasco, feliz embora, sabia que não voltaria mais, venda ali só por encomenda. Aquela água barrenta sempre pareceu insinuar coisa ruim. Restava acalmar a euforia do corpo desperto com a tristeza de uma história natimorta — cochilar no banco traseiro até que a estrada se iluminasse e pudesse tomar um pingado numa lanchonete.

De volta para a capital, ia se aproximando: ficava nas grafiquetas de Bonsucesso e Madureira, a seguir os estúdios de publicidade de Botafogo para retornar aos clientes de São Cristóvão e do Cachambi. Ouvindo da outra sala, qualquer patrão tinha de engolir o que ambos sabiam — total perda de tempo, dinheiro e saliva. E finalmente voltava a atacar os fregueses das redondezas da Gamboa, da rua Sacadura Cabral, das ruas Acre e Leandro Martins, da Riachuelo. Os olhos da Vasco cintilavam quando descobriu uma gráfica rápida instalada em duas lojas dos fundos de um shopping na Barra — ninguém acredita — na Barra da Tijuca — não, não são totalmente digitais, repetiu sem querer demonstrar triunfo. Ainda mais na Barra, jura? Vocês não conhecem o Rio, e coroava com um isso sim, o digital não dá conta de tudo não.

Mesmo com um vendedor pracista atendendo aos clientes do centro, gostava de ouvir que seu trabalho era o diferencial que não deixava o faturamento minguar. Escutava jogando a fumaça para baixo. Todos, afinal, mais dia menos dia, precisavam de filmes para rodar papel de embrulho, sacolas, notas fiscais, livros, revistas, folhetos, etiquetas, boletins, mapas, agendas, catálogos, propagandas, calendários, blocos, menus, receituários. Conversa que a Prefeitura vai obrigar a usar a nota eletrônica. Em tudo o que é botequim?, duvido. Depois, no Natal, alguns mandavam blocos de anotações ou calendários que rodavam pelas mesas durante o ano inteiro. Os que se acham mais criativos recortam bolachas de papel cartão para serem usadas como porta copos. No último Natal, levou para casa a garrafa de aguardente de Campos cujos rótulos foram rodados por uma gráfica que foi pro pau. Antes de darem o cano, receberam um engradado de um credor e distribuíram pela praça, por isso até no Rio os tais rótulos chegaram. Mais de uma vez quis abrir e provar o gosto da tal da cachaça, mas não calhava de dar tempo, até que tomou um gole mas já estava tão virada das cervejas com a Lourdes e a Dina, na véspera do feriado, que só deu pra apagar a guimba e deitar. Mas gostou e não sabe por que, depois disso, toda vez que começa o Esquenta ela lembra de tomar de novo.

Também queria ter tempo para marcar com o rapaz que consertou a máquina na firma para ele instalar a internet no CCE de casa. Mas ele nunca que explicava direito como era esse negócio de ligar para a companhia do telefone e pedir. Todo mundo dizia que era simples e, por não compreender uma coisa tão simples, o acanhamento lhe imobilizava. Além do mais, sabia que dependia da comissão das vendas, internet em casa era meio que um luxo. Jogar paciência, pelo menos, gasta nada.

Há alguns meses, a firma lhe pôs dirigindo um Gol geração três branco duas portas com seguro e IPVA pagos para que fosse de cliente em cliente. Sem ar sem rádio. Tinha de conferir o estepe, o óleo e a água. Não viam, num mundo onde apareciam cada vez mais embrulhos, sacolas, livros, revistas, folhetos, boletins, mapas, agendas, catálogos, propagandas, calendários, blocos, menus, receituários, como podiam despencar tanto as vendas. Mal pôde terminar a conversa na sala refrigerada do patrão para ir acender um cigarro na janela do sobrado velho e fingir que decidia o que já haviam decidido: ela ia rodar o estado.

Era a funcionária mais indicada. Separada há muitos anos, não conseguiu impedir a única filha, a quem criara até que ficasse mocinha, de ir morar com o pai, revisor de bulas para a indústria de remédios, e os avós, numa cidade perto de São Paulo. Por mais que pedisse, não conseguia fazer a garota dar notícias pelo telefone de como estava no ano do ENEM. Já pensou minha Jana virando chefe? Ela sempre mandava a mãe escrever um e-mail, pra que comprou esse computador aí que nem conecta direito — e esse era só um dos motivos que tinha para implicar. Vasco perdeu a conta das vezes que foi a uma lan próxima ao escritório, na hora do almoço. Impossível, não conseguia decorar aquele passo-a-passo, embora tivesse anotado as senhas no bloquinho de papel reciclado que carregava na bolsa. Saía tão desconcertada, sem saber como dizer à garota que queria ouvir a voz dela, tão frustrada pela espera, sem saber se a mensagem seria respondida — e se fosse, teria de voltar à lan pra saber ? — que fumava andando pela calçada esburacada de volta, o que definitivamente lhe fazia muito mal. Acabava deixando a comida para Nádia, a secretária da autoescola da sala vizinha. Quando estava com pressa ia lá esquentar seu pote, eles têm micro-ondas e o Marmitex parece que sabe quando a gente está com pressa e não ferve a água por nada nesse mundo. Acabavam até se divertindo quando ela contava das implicâncias do tempo de Jayme, que era muito inteligente, isso era, mas como é que baixinho e gordo daquele jeito apronta tanto, e a outra perguntava e depois dele, ih, nem te conto. Em troca, era uma múmia cada vez que o seu Quintas pedia pra avisar à Nadia que precisava resolver alguma coisa no banco. Saía quase quatro horas e a garota, ex-babá na casa dele, tinha coincidentemente que levar a mãe doente à médica. Era o verdadeiro silêncio em pessoa quem atendia o telefone e caprichava na letra do recado da mulher dele — boníssima pessoa, sempre colaborava escolhendo algum batom ou sabonete do catálogo da Natura que a Vasco também vendia.

Com o carro, agora, fica mais fácil ir até lá. Prelibou o itinerário, consolando-se naquele início de outono abafado no Rio. Posso deixar agendadas as visitas e informar que tenho muitos contatos a ativar, vou organizar várias planilhas do Excel, mando imprimir com as tabelas diferenciadas pelas cores, e quero ver quem vai inventar que isso não é otimizar as vendas. Coitado do seu Quintas se deixasse na mão de outra pessoa, enquanto organizava com clips de plástico colorido os rascunhos com as projeções multiplicadas e porcentagens. Uma tabela exclusiva de descontos progressivos bonita de se ver.

Fez questão, nesta viagem, de priorizar os clientes tradicionais de Petrópolis, antes que se tornasse verdade o boato ameaçador: estavam todos comprando screen de folha inteira. Mas talvez tivesse se precipitado um pouco. Aqueles que ainda montavam caderno de livro colando com durex página por página na grande mesa de luz para tirar uma heliográfica, agora estavam usando papel vegetal. Filme, só pra projeto, que foi o nome que inventaram para trabalho colorido de cliente graúdo que mama patrocínio de banco. Não voltaria sem encomenda que justificasse a saída. Resolveu, pagando do próprio bolso a gasolina, pegar a estrada que corta a serra até Rio das Ostras. Tinha que tirar mais pedido, tinha que chegar a Ribeirão de carro para ver Jana. Já pensava onde comprar chicletes para mascar antes de abraçá-la, que ela sempre disse que tinha alergia ao cheiro da fumaça na boca e na roupa. Aproveitou para acender um cigarro e, empesteando o estofado, a camisa, os dentes e a echarpe do Saara com a nhaca temperada pela umidade da mata que margeia a estrada — nem pensou que fosse tão longa e deserta, fumar em paz — o dinheiro para comprar, essa menina não sabe quanto custa ganhar.

Será que ele se importaria se você fizesse um email pra mim?, já remexendo a bolsa pra pegar a carteira onde guardava anotada a senha que sabia de cor. “Ih, amiga… Caramba, acho que sim. Ele colaborou com a compra dos pcs para a escola da prefeitura, diz que aqui não é correio”. Ah, bom, deixa pra lá, tornando a colocar na bolsa a carteira ainda fechada. Ainda era quarta-feira e Araruama promete, de outra vez consegue tirar uma nota. Mais de trezentos quilômetros rodados.

Diante da resposta da amiga, instantaneamente planejou o retorno direto para o Rio, a entrega do carro na firma. Estava no escritório de uma distribuidora de bebidas, onde a antiga dona de uma gráfica que não sobreviveu às novidades acabava de ser contratada como gerente. Na semana seguinte, sem falta, iria lá. Hoje dona Vasco teria de se apressar para chegar antes dos engarrafamentos do fim da tarde. E a necessidade de ordenar o que iria dizer, de mostrar o quanto estava sendo lucrativo todo esse investimento, de reiterar que o contato pessoal é imprescindível para a fidelização da clientela ocupou sua atenção pelos duzentos quilômetros da estrada de volta de Cabo Frio. Não ia emendar até Ribeirão.

Na semana seguinte, faria Barra Mansa, Volta Redonda, Barra do Piraí, Resende, Porto Real e Quatis e, quando na sexta chegasse Ribeirão das Neves, daria um jeito de avisar que as vendas tinham sido excelentes, que ninguém por aqueles lados queria saber de ctp, arquivo zipado, gravar fonte, print de capa, mas estava muito cansada, perigosíssimo descer a serra das Araras. Há mais de uma semana tinha comprado um pacote de Paçoquinha e duas caixinhas de Polenguinho no depósito da rua da Conceição onde os camelôs se abastecem. Será que não posso voltar amanhã ou depois? Obrigada, muito obrigada mesmo, seu Quintas, segunda cedo estou aí, pode deixar. E desligou rápido com medo de que, antes de os créditos do celular acabarem, ele mudasse de ideia. A Nádia, como se a Vasco não soubesse, ele ia ter que arranjar uma desculpa para não emprestar o carro no final de semana. Complicado dirigir, fumar, falar no telefone.

Ligou a cobrar para o celular da filha. A ligação não completava, vai ver Jana estava em aula. Ela vai ficar doida com as paçocas. Comprou um cartão no jornaleiro; não havia naquele raio de fim de mundo um orelhão intacto. O sujeito que atendeu no número que tinha da casa de Jaime disse que há muito tempo aquele número era dele, deve ter ligado errado, tenta de novo, minha senhora.

Ia tocando o pé na Dutra. Num final de tarde de sexta-feira não ia, jeito nenhum, ficar em Resende. A milicada que pode, depois do almoço vai para as suas cidades. Os que ficam são os capitães e majores que trouxeram a família, e as mulheres àquela hora tinham marcado cabeleireiro para à noite irem escovadas ao cinema dentro da própria AMAN.

Não resistiu, desviou à direita e seguiu a reta que leva a Penedo. E se lá não tivesse sinal de celular, nem orelhão, nem uma birosca de onde Vasco pudesse ligar a cobrar? Riu gesticulando para si mesma com o cigarro na mão: de quem? A cobrar de que boa alma? Desistiu — fazendo a curva na lateral do acostamento, retornou para a Dutra. Levantou o vidro que a friagem do final de maio começava a cortar na pele. Viu de longe o Paraíba, passou por fora de Resende. Não é possível que, chegando a Ribeirão com dia claro, não se recordasse de onde ficava a casa da sogra, de Jaime, de Jana, Jana, da minha Janinha de quem nem conto a ninguém que tenho saudade, e o peito minguou feito uma passa descartada do bolo e Vasco quase perde a bifurcação que vai dar na matriz de Ribeirão. Na praça, uma vaga fácil, hesitou diante da igreja de portas abertas. Antes de saltar, não resistiu, em duas mordidas engoliu um Polenguinho.

Preferiu não entrar na igreja. Sentada no banco de concreto, onde atrapalhava a propaganda da Papelaria Cristal, tragou. Num só jato expulsou a fumaça. Olhava cada um que passava, a forma mais concentrada de tentar se enxergar. E se Jana se aborrecesse com a surpresa? Da última vez se falaram tão rápido. Até que se lembrou de que precisava recarregar o celular. Descia com o violeta do céu a friagem que antecipa as geadas na Serra do Mar.

Na diagonal, um quiosque vendia milho cozido, lanches, bebidas, pilhas, isqueiros. Pediu um pacote de Cheetos, viu o benjamin no gato para ligar a televisão. Perguntou à atendente se ela era da cidade mesmo — sou não, cheguei de Itamonte faz pouco — até criar coragem de pedir a gentileza de colocarem o telefone pra carregar. Nos postes baixos, as luzes amarelavam o lusco-fusco. Garotos ainda de uniforme de escola jogavam bola no gramado gasto. Vasco tomou um Guaraviton para provocar o enjoo doce que engana a fome.

Em redor do quiosque, mesas e cadeiras de plástico turquesa com estampas da Antarctica instalavam uma avó com gêmeos no carrinho, sujeitos vestidos com uniforme de borracheiro e, pouco depois, ele, que chegou perguntando se a cadeira da frente estava ocupada. Não, pode ficar. Ele tinha acabado de passar o plantão e ia pegar o ônibus para Itajubá, na hora do jornal da Globo estou em casa, disse. Parou só pra comer um hambúrguer antes de ir pra rodoviária. Era médico? Não, trabalho na farmácia.

Essa aqui, da praça?, apontou, instantaneamente vexada pelas veias empelotadas das mãos que denunciariam a idade.

Não, ali, ó, depois da casa azul, descendo a ladeira pro bairro velho. Ela sentiu que ele tinha tomado banho antes de vestir a camisa de brim, com dois bolsos frontais. Olhou a jaqueta de nylon que estava dobrada na mesa, com o emblema do — demais querer saber se era do Real Madrid ou do Palmeiras. Do Flamengo ou do Botafogo é que não era.

Mora aqui há muito tempo? Falava com tanta gente a semana inteira que era o mesmo que falar com ninguém. Você trabalha por comissão?

Trabalho lá desde os dezesseis, quando meu pai ainda era vivo. Tem uns dez anos, mais ou menos. Minha mãe casou de novo e foi morar em Itajubá, eu fiquei indo e vindo. Vasco começou a perceber como era bom conversar, atiçando com suavidade o instante em que o farmacêutico de barba ainda rala se interessaria por ela. Respondia com planejado desinteresse o que ele queria saber do Rio de Janeiro, até que perguntou se conhecia Jana e levantou-se.

Talvez por ter percebido a curiosidade da velha, talvez por sincera desmemória, repetiu: Jana, a que tem a tatuagem no ombro? Talvez para não esquecer o celular, talvez porque nem soubesse da tatuagem da filha, fingiu não ter ouvido a pergunta. Voltou com duas latinhas de Skol e, jogando debaixo da mesa o fósforo com que acendeu o cigarro, explicou, sem detalhes, o que estava fazendo ali.

Ele contou que estava se preparando para ir para São Paulo. E ela pensava que se Nádia estivesse ali traçava o sujeito. Mais ia contando, e ela sabia que se lhe lembrasse de comprar o hambúrguer a preocupação soaria maternal, tangeria o pimpolho. Riu por dentro: pimpolho, aparência séria. Frio, ele acusou, esfregando as mãos. Paciente, ela precisava que ele ficasse, se a tatuada fosse Jana? Quer um conhaque pra esquentar? Cumprimentou alguém que passava pela praça, a igreja já ia fechar. Quando escutou a vinheta da novela, decidiu voltar ao assunto. Mas agora ele estava animado contando sobre o curso do SENAI que fazia de manhã; ela somava os gastos com a gasolina, bebida, os pedágios, empatava com o que vendeu — e ele disse para ela que, de repente, a informação do que ela queria saber ficava toda numa chip — quer dizer, num chip — e ela posou o queixo na mão sem cigarro mais uma vez e percebeu, enquanto ele lambia a ponta do seu nariz que começava a congelar, a língua quente quase a compactava num arquivo mas não, a meia de seda é muito fina e eu não trouxe calça, um amendoinzinho é bom, não estou virando megabite, vai pagar outro?, a dona tá se animando; mas ela ia se perdendo porque não encontrava formato, podia ser odt, doc, pdf, tiff, jpg, mas conectar Jana, ah, o nome fui eu que escolhi porque eu gostava da Leila Diniz que também tinha uma, Janaína, minha filha, e eu por muito pouco não te acertei as vistas na única vez que te chamei de Janaína, minha filha, a faca raspando a bochecha no instante em que ela falou, só porque Jaime desaparecera e tinha deixado de depositar a pensão, que era óbvio, com uma xota esburacada e malcheirosa e gasta que tava na cara que eu tinha, Janinha, minha filhota, que saudade, e ele ofereceu conhaque com mel de novo e ela que não tinha almoçado sentiu a traqueia ferver e desse jeito dá pra conectar Jana, se você, ah, mulher, de onde vem esse teu nome esquisito, se ainda fosse América ou Vitória, não, só pode ser outra, acho meio que tinha uma boca parecida com a tua, você conheceu mesmo uma Jana, o arrepio do bigode novo roçando a pele, uma Jana que namorava um coroa chamado Jaime, não, é outra pessoa, claro que você tá enganado, vamos pro carro que esse sereno, tem certeza de que ele era barrigudo, cata no Feice ela ainda deve estar lá, Janinha minha, já fez o simulado, me fala, vai tentar Pronatec também?, e a mão apertada na coxa, tem certeza de que era ele quem te encomendou Citotec, ele com certeza, parece que ela, só ouvi falar, e um bit da Vasco se empastelava na nuvem inflamada de alcatrão e nicotina, imerso na geleira do breu das Agulhas Negras, que tudo apaga.

Luciana Viégas

É escritora e tradutora. Organizou, em 2015, O século de Camus, que completa a trilogia com a reunião da prosa crítica de Lucia Miguel Pereira. É autora do romance A oficina (2011).

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