Autópsia

Conto inédito de Francisco de Morais Mendes
Ilustração: Mello
28/02/2019

Autobiografia? Não, este é um privilégio reservado aos importantes deste mundo, ao ocaso da vida, e num belo estilo. Ficção de acontecimentos e de fatos estritamente reais; ou se quiserem, autoficção, por ter confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem em liberdade, fora da prudência e fora da sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontros, fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou de depois da literatura, concreta, como se diz da música. Ou ainda, autofricção, pacientemente onanista, que espera agora partilhar seu prazer.
Serge Doubrovsky, na quarta capa de seu romance Fils, 1977

Tentar, tentamos.

De nada adiantaram nossos argumentos. Explicamos a ele que a autoficção é (sem juízo de valor) um subgênero literário (e bota sub nisso, resmunga o crítico rancoroso), ficção como qualquer outra; no Brasil virou moda recentemente e, como modismo, logo vai desaparecer; vem atraindo alguns raros bons escritores e aquele previsível monte de palermas que acha que a vida por si só dá boas histórias acolhidas de bom grado pelo mercado para descartá-las no mês seguinte.

Difícil chegarmos a um acordo. O pau quebrou entre nós, desviando do assunto que interessava.

— Talvez a grande questão seja a de “classificação”. Não acredito que seja um modismo — somente o fato da utilização do nome — mas algo que sempre existiu, de alguma forma (apesar de, antigamente, a vida “pessoal” não ser importante, sempre havia algo de pessoal na escrita). Enfim, uma longa discussão — disse uma de nós, também autoficcionista, sacando da bolsa e colocando sobre a mesa uma tese de doutorado, 250 páginas, sobre as autoficções.

Na tese (da professora Anna Faedrich Martins) são explorados, com muita riqueza, os diversos aspectos de uma literatura que se propõe, entre outras coisas, como ruptura com o realismo, como mistura entre ficção e testemunho e como, proposta do próprio criador do termo, uma “prática de cura”.

O termo foi criado há mais de quarenta anos (coisa velha, insiste o crítico rancoroso), pelo escritor francês Serge Doubrovksy — como o sobrenome indica, gosta de tudo em dobro (essa é do trocadilhista infatigável) — para caracterizar um gênero de escrita híbrido, ao mesmo tempo ficção e autobiografia (como se esta última não fosse ela também ficção — de novo, o crítico).

Todo o problema, gente, está na dobradiça que liga a ficção ao extraliterário — sentencia a poeta.

Cessados os argumentos literários (Doubrovsky também brincou com o termo chamando-o “autofricção, pacientemente onanista”), passamos às ameaças veladas. Pense as consequências, grande Dama: processo por lesões corporais, prisão ou indenização. Sem falar na dor de cabeça que tudo isso acarreta e, melhor que todos, você bem sabe, pois é advogado. Bem, tentar, tentamos.

Tentamos e desistimos.

Nada debaixo do céu poderia conter a ira damascena. E agora pensamos nos cuidados que teremos de tomar para contar essa história. Por razões que logo serão compreendidas, vai assim, narrada por um coletivo. Com uma vantagem: estávamos em todos os espaços onde transcorreu a história. Pura vida real. Com a ajuda do Google.

De uma relação amorosa de oito anos, rompida sem maiores explicações, resultou “Autópsia”, o recém-lançado romance de Vítor Cardoso, o Vic. O livro conta a vida dele com Glória, para nós, Glorinha, a caçula da família Damasceno. Até hoje ela não se restabeleceu inteiramente do fim do relacionamento.

Separaram-se há dois anos, e o cara foi rápido entre escrever e publicar. Os outros dois livros que ele lançou antes são bons e tiveram alguma repercussão, mas logo foram eclipsados. Esse, não. Figura há dois meses na lista dos mais vendidos (Ah! Os mais “vendidos”.).

A editora fez do lançamento um estardalhaço, apelando para o fato de se tratar de uma história real, apelo, convenhamos, ridículo nessa época de bigbrothers e facebook. Mas é o que está pegando. As pessoas expõem a intimidade sem qualquer pudor, e professores e filósofos dizem que a era da privacidade acabou: hoje o que tem valor é a exposição ou a superexposição da intimidade. Recesso do lar? Isso só existe na cabeça do Damasceno.

Ao visitar Glorinha, Damasceno encontrou-a lendo “Autópsia”. Pediu para ver o livro e leu na quarta capa: “Nunca uma relação amorosa foi exposta com tanta clareza, tanta frieza e tanta emoção. Este livro nos leva a repensar nossa vida, por mostrar que em qualquer relação escondemos coisas de nós mesmos. Só o talento e a coragem de Vítor Cardoso poderiam trazer essa história à tona. Antes dele esse gênero literário — a autoficção — apenas engatinhava no país. Era uma brincadeira de diletantes. Agora encontra sua real expressão. Por tudo isso, este livro é o grande acontecimento da temporada”. (Da tem porrada — do trocadilhista).

Um crítico escreveu que, depois da leitura de “Autópsia”, até os móveis da casa seriam olhados de maneira diferente pelos casais. Outro crítico: “Sim. Trata-se de uma autópsia. Realizada em cadáveres como o da obra de Nelson Rodrigues. Depois de Vítor Cardoso, a obra de Rodrigues passará a ser classificada como infantojuvenil”.

Um resenhista viu ali a autópsia do casamento convencional, outro da família tradicional. Um terceiro, na ânsia da contundência, concluiu: “Enfim, trata-se de um livro mortal. Um desses livros que vêm para acabar com tudo que se fez antes dele”. Só os clichês não acabam. Só os clichês não morrem.

Acabar com a alegria de Vic, esse parecia ser, desde a visita a Glorinha, o propósito de Damasceno. Deve ter passado os últimos meses viajando bem longe, porque nada ouviu ou leu sobre a repercussão ensurdecedora do livro de seu ex-quase-cunhado. Vítor e Glorinha não chegaram a morar juntos, viviam cada um em sua casa, num relacionamento, segundo uma das piadas do livro, inspirado no casal Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.

As piadas, e não são poucas, não são o mais grave no livro. Vic sabe explorar o humor, nisso ele é muito bom, embora haja, sempre haverá, quem divirja. O que deve ter incomodado em extremo a Damasceno, além, claro, da exposição pública da imagem da irmã, foram as alusões a seus pais. Aí, como se diz, é onde o bicho pega. Pega e esfola. Não deixa pelo sobre pelo na fauna familiar. O mínimo que diz do Damasceno pai é “velho fascista para quem banho só existe a cada três ou quatro dias”. Nada disso é gratuito no livro, pois Vic produz metáforas, boas metáforas, reconheça-se, e consegue vestir em força poética a roupa suja do velho.

O tratamento dado a Damasceno, transformado em personagem de peso, é outro problema. Desde nossa juventude, o chamamos de Dama, claro. O melhor jogador do nosso time de rua era uma dama, o Dama. O melhor estudante da turma de Direito era, do mesmo modo, uma dama. E ele nunca se incomodou. No texto de Vítor Cardoso, “Dama” ganhou um perigoso duplo sentido, talvez para provocar o enrustido machista, que se cala para não parecer politicamente incorreto, enquanto em seu olhar grita a ironia com que vê a discussão de gênero e do autoritarismo da linguagem e os avanços das minorias. Convenhamos, Damasceno é um tremendo reaça. (Poxa, não fala assim do nosso amigo!)

Agora concluímos que o Vic foi um tremendo tolo (“trocou a Glória pela glória”, putz, a gente precisa ouvir coisas desse tipo, com o cara gesticulando a grafia para entendermos a piada?). Primeiro, por deixar a editora dar tal tratamento ao livro. Embarcou num modismo que chegou tarde ao Brasil e durará, se tanto, mais três ou quatro anos; morrerá definitivamente levando consigo a produção hoje ancorada no termo “autoficção”. (Bando de babacas. Se for boa literatura, pouco importa a origem da história. Modismo é o cacete, seus caretas!) O que sobrar vai, claro, desvincular-se do rótulo, mas no caso de livros como “Autópsia”, isso será impossível. A autópsia anuncia o cadáver. Não fosse apenas por isso, a autoindulgência e o vitimismo terminam por aniquilar o próprio autor. O que restará ele mesmo assinala e assina: um pobre coitado.

(— Ele sabe rir de si mesmo, vocês não entendem.
— Quem não entende é você, ele é um idiota.
— Não chama meu amigo de idiota, imbecil.
E por aí vamos).

Mas no que dependeu de Damasceno, “Autópsia” ganhou uma sobrevida na última sexta-feira, quando ele se postou, acobertado por um chapéu e pela coluna de madeira, na última mesa da Cantina, o bar frequentado por Vic e seus amigos escritores. Com o livro aberto, tomando devagar uma cerveja — degustando, escreveria Vítor Cardoso —, esperou com paciência a chegada do grupo de confrades. Eles próprios se intitulavam “A confraria”. Estranho nome de instituição velha, com cheiro de armário mofado, para um grupo de revolucionários da literatura. (Bom, não somos nós que iremos julgá-los, mesmo porque há alguns deles aqui, bem comportados, escrevendo este texto.).

Logo chegou o primeiro confrade. Dama o conhecia de festas da casa de Glorinha. Assentou-se perto da porta, pediu um chope e se envolveu com a leitura no celular, até ser despertado pelo segundo confrade — os óculos denunciam uma miopia fora do normal. Este esperou o outro terminar o chope e então pediu uma cerveja. Conversavam animadamente, enquanto Damasceno estudava a posição das cadeiras, para tentar antecipar onde se sentaria Vítor Cardoso.

Chegaram mais dois, um deles o Damasceno não conhecia. O outro, apelidado de Louro, era também conhecido, frequentador das festas de Glorinha e Vítor. Dias atrás, havia tido uma quase áspera discussão com o Dama, porque Vic insinuava que Louro, claro, com nome e aparência trocadas no livro (“o que contraria as regras da autoficção, pois é característica do roman à clef”, resmunga o crítico), tivera um caso com Glorinha.

Por fim, o próprio Vic chegou. Damasceno abaixou a cabeça e mergulhou na leitura. Sabendo o outro instalado, olhou discretamente, viu que seria fácil. Vic estava de costas para ele.

“Nada como a surpresa, uma boa surpresa”, deve ter pensado nosso amigo, antes de pedir outra cerveja e saltar algumas páginas na busca de uma passagem que o interessasse ou o deixasse com mais raiva.

Não precisava da leitura para isso, porque alguém começou a cantar “No, woman no cry”. A canção vinha da rua — na Cantina não havia som ambiente. Damasceno chegou a distrair-se com a música, tentando alcançar as palavras de Bob Marley:

I remember when we used to sit
In the government yard in Trenchtown
Ob-observing the hypocrites
As they would mingle with the good people we meet
Good friends we have, oh, good friends we have lost
Along the way
In this great future, you can’t forget your past

E quando chegou no verso Oh my little sister, don’t shed no tears, o grande Dama levantou-se. Depois, ele próprio nos contando: imagine como uma canção que você ouviu a vida toda pode ser ressignificada num determinado momento. Quando ouvi o cara cantar, “oh minha irmãzinha, não derrame suas lágrimas”, desisti de terminar, como planejara, a segunda cerveja; coloquei o dinheiro sobre a mesa, guardei o livro na bolsa e me aproximei do sujeitinho.

Tocou-o no ombro. Vítor Cardoso virou o rosto e se levantou com um meio sorriso. Dama não lembra o que disse, mas foi algo sobre o próximo livro. Vic respondeu que não, não estava escrevendo nada no momento. Dama gostaria de sugerir o título do próximo romance, mas não chegou a dizer porque, segundo ele, sem obedecê-lo, antecipando-se à sua vontade, a mão direita pranchou-se aberta na bochecha esquerda de Cardoso, e ele viu algo sair da boca na velocidade de um disparo, e bater no peito de um dos seus amigos, paralisados pela surpresa. E não ficou nisso: a mão esquerda, como se em disputa com a outra, meteu um soco no nariz de Cardoso. O Dama detesta ver sangue, passa até mal. Então resolveu ir embora, não sem antes terminar a frase: seu próximo livro vai se chamar “Dentes a menos”.

O fotógrafo Pedro Resende estava na porta do Pronto-Socorro pensando na estranha frequência dos acidentes com ônibus de romeiros. As quarenta e duas vítimas de um ônibus que despencou numa ribanceira chegavam aos poucos ao hospital, e Resende fora escalado para fotografá-las. (Outras dezessete foram diretamente para a Medicina Legal. Outra equipe estava lá). Era o quinto acidente no ano, envolvendo ônibus mal conservados ou clandestinos. Entre uma e outra vítima clicada, Pedro Resende trocava, com o repórter Agnaldo Fonseca, impressões sobre as relações de Deus e romeiros, quando viram chegar mais uma vítima. Resende já estava clicando Vic, amigo de Agnaldo, achando que era um dos passageiros do ônibus. A camisa branca empapada de vermelho dava um colorido vibrante à foto que o jornal poderia estampar. No rosto, a mancha de sangue começava a coagular.

Depois de informado pelos amigos de Vítor Cardoso sobre a agressão, Fonseca e Resende ficaram imaginando as manchetes do dia seguinte. Sangue na Cantina: jurista massacra escritor. Ou: Advogado ignora moda literária e enche escritor de porrada.

Não. Agnaldo Fonseca não faria isso com o seu amigo. Pediu a Resende que enviasse cópia da foto para o seu e-mail e a apagasse da câmera, pois algum desavisado no jornal poderia confundi-la com as fotos das vítimas do acidente.

Perguntamos ao Vic se ele vai levar o caso adiante, processar Damasceno. Ele responde assoviando, pela falta do dente e com o rosto inchado, que ainda não decidiu sobre isso. Quanto a Damasceno, depois de relatar o episódio para alguns amigos, trancou-se no sítio e deixou mensagem na secretária eletrônica do escritório: voltará somente depois do dia vinte.

Quanto a nós, estamos transtornados com tudo isso. E é tudo. Ou quase tudo, porque não sabemos se teremos que pedir autorização, e nem a quem, para usar a letra da canção de Bob Marley neste texto.

(— E a tradução da letra? Tem que pôr.
— Muito elitista texto em inglês sem tradução.
— Cara, a tradução o leitor encontra na internet, não enche o saco).
E o resto é silêncio, e isto sabemos, é o príncipe Hamlet. É Shakespeare.

 

Francisco de Morais Mendes

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1956. É autor de Escreva, querida (1996), A razão selvagem (2003) e Onde terminam os dias (2011).

Rascunho