A tela misteriosa

Conto inédito de Fouad Laroui
Ilustração: FP Rodrigues
02/08/2022

Trad.: Felipe Benjamin Francisco

Bab Doukkal

Ele entrou pela porta do restaurante às 12h15, do jeito que sempre fazia.

O inspetor Hamdouch era metódico, quase maníaco, nas palavras de sua falecida esposa — uma francesa do Marrocos, vítima de tétano poucos anos depois de se casarem. Viúvo e sem filhos, Hamdouch almoçava todos os dias, ou pelo menos quase todos, no restaurante Délices de l’Orient, em frente ao palácio do paxá Glaoui.

O proprietário do restaurante, Driss Bencheikh, cuidava para que a mesa do inspetor estivesse sempre reservada das 12h às 14h. Caso um turista distraído ou algum local desavisado ousassem se sentar à mesa do inspetor, Bencheikh indicava outra mesa de modo autoritário, pois agia — de certa forma — em nome do Makhzen, o Reino Marroquino, o que explicava seu comportamento um tanto rude. Afinal, não se questiona a autoridade do Reino.

Assim, Hamdouch sentava-se na mesma cadeira, todos os dias, exatamente às 12h15. Na parede à sua frente, a apenas duas mesas de distância, havia um grande quadro. Na verdade, o quadro só apareceu, de forma misteriosa, na terceira vez em que o inspetor foi ao restaurante. Aquilo o deixou levemente incomodado. Até então, tudo que havia diante dele era uma parede ocre sem graça. Hamdouch almoçava olhando para o vazio, o que lhe aprazia bastante, pois podia ficar ali, pensando na vida. Até que um dia, materializou-se à sua frente, inesperadamente, aquele enorme retângulo colorido.

O policial não era um homem das artes, mesmo apreciando a poesia musicada do melhoun. Em todo caso, não entendia nada de pintura. No início, percebeu algo novo em seu campo visual, mas não lhe deu a devida atenção. Era uma pequena mudança em sua rotina, circunstância que até o incomodava, mas que estava longe de ser, como dizem por aí, o fim do mundo. Como de costume, continuava a olhar para fora, pela janela, como se monitorasse o vaivém dos transeuntes — sem dúvida, um cacoete da profissão, mas quem não tem suas manias?

Um dia, ele se cansou de observar as pessoas na calçada com sua balbúrdia odiosa, os numerosos turistas de sempre, que já partiriam de vez no dia seguinte. Virou-se então para a esquerda, com o copo de chá na mão, e se deteve na tela. Apertou um pouco os olhos por causa do reflexo da luz, até que conseguiu distinguir a cena da pintura de cores gritantes com diversos personagens. Um deles prendeu sua atenção. Examinou cuidadosamente a silhueta. Minha nossa!

Hamdouch franziu o cenho e gritou para o proprietário: “Ssi Driss!”.

O dono do restaurante correu em sua direção, enquanto secava as mãos com uma toalha branca. Abaixou-se, esboçando um sorriso tímido, pronto para atendê-lo. O inspetor apontou para a razão de sua ira com a mão direita, a mesma que segurava o chá, de modo que parecia brindar — talvez à arte?

“Esse… esse… tableau!”, disse o inspetor em francês, já que certamente não conhecia a palavra “quadro” em árabe, ou, quem sabe, já a tivesse esquecido.

Oui, Ssi comissér?”, disse o proprietário em tom atencioso e servil.

Hamdouch baixou a voz, que inspirava ameaça — ele sabia exatamente como e quando deveria falar assim, afinal não se tornou inspetor de polícia à toa.

“Por acaso é Sua Majestade o rei, que Deus o guarde, que está representado no centro da pintura? A maneira como o fizeram beira o desrespeito!”

Por obrigação, Driss lançou um olhar relâmpago para o personagem que ocupava o centro da tela e respondeu sem hesitar: “Não, meu Deus, não! Esse é o paxá… digo o antigo paxá, Moulay Mimoun”.

Hamdouch insistiu: “Mesmo assim, ele está no centro, como se fosse um senhor montado num belo cavalo”. O inspetor, então, apoiou o copo na mesa e, com o dedo em riste indicou o que estava descrevendo, continuou: “Atrás dele há alguém com um grande guarda-sol branco, e há também muitas pessoas viradas na sua direção… Na verdade, todos estão posicionados como se Sua Majestade estivesse na cerimônia de lealdade durante a Festa do Trono, a bay’a”.

“Eu lhe asseguro, Ssi Hamdouch, que se trata do paxá. E depois, mesmo que os traços dele não estejam evidentes, é possível distinguir seu cavalo preferido.”

Aliviado, o inspetor perguntou novamente: “Que paxá é este? Seria Ssi Lamrani?”.

“Não, não. Como eu lhe disse, trata-se de seu antecessor, Moulay Mimoun.”

“Só queria me certificar.”

O inspetor, satisfeito, assentiu com a cabeça, deu mais um gole no chá e voltou a examinar a cena movimentada da tela à sua frente e suas cores sugestivas. Após aguardar alguns minutos, o dono do restaurante viu que sua presença não era mais necessária e se retirou, espantando moscas imaginárias com a toalha.

No dia seguinte, quando Hamdouch se sentou à sua mesa, olhou de imediato para a pintura, antes mesmo de dar uma espiada na rua. Com olhar sombrio e feição tensa, concentrou-se fixamente no quadro.

Havia sonhado com a pintura a noite inteira.

O inspetor odiava sonhar. Ficava furioso sempre que se lembrava de algum sonho ao despertar. Sentia-se insignificante e humilhado. Tinha a impressão de ter perdido o controle de si mesmo naquelas aventuras noturnas onde tudo parecia possível — e qual o propósito, meu Deus? Será que os gatos também sonham? Sentado na cama, recitou a tradicional invocação muçulmana: “Maldito seja Satã!”. Como não era um tipo totalmente inculto, logo se perguntou o que diria a psicanálise de seus sonhos absurdos. Havia um número razoável de psicanalistas em Marraquexe — ele tinha alguns cartões de visita —, mas com certeza não iria se consultar com nenhum deles. Seria reconhecer a derrota. Você não manda um inspetor de polícia se deitar num divã. É ele quem interroga os suspeitos e não o contrário. E quem poderia ser mais suspeito do que um lacaniano em Marraquexe?

Naquela noite, sonhou com o quadro que decorava a parede do restaurante. No sonho, a cena pulsava, viva; de certa forma, o policial fora engolido por ela. Viu-se acompanhando os passos do alazão que levava o paxá, enquanto todos o ignoravam e o empurravam — que falta de respeito com sua patente! Em meio ao caos do ambiente — burburinho, furor, poeira —, um dos homens da pintura tentou enfiar um saco de lona em sua cabeça — isso mesmo, um saco de lona! —, como aqueles da polícia secreta nos velhos tempos, na década de 1970, os anos de chumbo, quando se sequestravam políticos, sindicalistas e estudantes de filosofia. Que absurdo! Ele, o inspetor Hamdouch, mkhennech, ensacado! Era o mundo virado do avesso! De tanta indignação, despertou. Suava e tremia da cabeça aos pés.

Agora, comia sua salada de pimentão com tomate, os olhos fixos na pintura maléfica, como se quisesse descobrir algum segredo ali. Na verdade, fora tomado por um sentimento estranho durante sua intrusão noturna naquela cena que parecia eternamente congelada: todo mundo observava o paxá, o que era totalmente natural — até um cachorro estava virado para ele —, mas o inspetor havia sentido que todos aqueles olhares estavam, de certa forma, carregados. Nenhum olhar demonstrava a menor curiosidade ou admiração — que bela procissão! — ou mesmo o tão conhecido hiba, “medo reverencial”, sobre o qual se alicerça a estrutura do Makhzen. Aquelas miradas expressavam algo mais. Estavam carregadas — pensou o inspetor, frustrado por sua inabilidade em encontrar palavras para descrever o que observava, pois seu repertório de adjetivos era muito limitado nas duas línguas que conhecia: o árabe e o francês.

Hamdouch refletia, resignado — os olhos na tela, o garfo no ar com um pedaço de pimentão. “Estou abrindo uma investigação”, murmurou em voz baixa.

Ao captar algumas palavras incompreensíveis, o dono do restaurante se apressou: “Monsieur le comissér? Mais pão? Quem sabe um pouco d’água?”.

Pego de surpresa, o inspetor desatou a tossir e apontou com o garfo para a parede — o pedaço de pimentão dependurado bem na ponta do talher. Em seguida ouviu sua própria pergunta: “Quem pintou esta tela?”.

O proprietário olhou para o garfo, depois para a parede, depois para a tela. Linhas expressivas despontaram em sua testa horizontalmente — tinha o ar de quem refletia —, e por fim respondeu: “É de um jovem chamado Brahim Labatt. Ele morava num bairro próximo, ao lado do souk dos artesãos de ferro”. Driss se aproximou do investigador e, adotando o ar fúnebre que precede este tipo de revelação, cochichou: “Ele suicidou-se alguns anos atrás. Que Deus nos proteja”. Pronunciou de forma quase inaudível. “Parece que esta tela foi seu último trabalho antes de…”

Driss não terminou a frase. O inspetor, por sua vez, gravou na memória a informação e naquele momento abriu — sempre mentalmente — um dossiê em nome de Brahim Labatt, jovem falecido sob circunstâncias suspeitas. O inspetor sabia — as estatísticas não mentiam — que o suicídio era raro em terras do islã. Por isso precisava esclarecer aquela situação. Com um gesto desenvolto e o pimentão precariamente equilibrado na ponta do garfo, interpretando seu papel vagamente acusador, pediu que Driss se retirasse. O proprietário do restaurante correu para receber um grupo de turistas japoneses que acabava de entrar, e se pôde ouvi-lo louvar seu espaço e sua cozinha num inglês trôpego, ousando barulhos de sucção: “The best in Marrakech, of course!”.

Hamdouch terminou a refeição sem conseguir tirar os olhos do quadro. Tratava-se de uma mera obra de arte ou de algo mais? E, afinal, o que era a arte? O policial perdeu-se num abismo de ideias.

De volta ao escritório, Hamdouch chamou um de seus agentes, Ba Mouss, conhecido como “Computador” graças à sua memória extraordinária, pelo menos quanto a crimes, contravenções e outras ocorrências excepcionais na área. Fora isso, não sabia mais nada. Ba Mouss nunca fora transferido para outra unidade, pois transferi-lo significaria perder um computador, ou seja, perder todos os dados que ele armazenava — e ninguém queria uma coisa dessas.

Baixo, de corpo franzino e olhos verdes, o homem-máquina entrou na sala do chefe, que cortou direto para o assunto e foi logo dizendo: “Ba Mouss, você já ouviu falar de um tal Brahim Labatt? Um pintor?”.

Como se Hamdouch tivesse apertado a tecla “Enter”, Ba Mouss ficou na posição de sentido, limpou a garganta e começou a apresentar as informações: “Brahim Labatt, filho de Abdelmoula, era encanador. Não terminou o secundário e era o único filho da viúva Halima, com quem morava no Derb Dekkak, onde permaneceu sozinho após a morte da mãe. Era também pintor amador, pode-se dizer. Pintava quando não tinha trabalho, o que era bastante frequente, e expunha suas obras na rua, próximo à barbearia. Chegou a vender alguns quadros para turistas alemães”. Seguiu-se um breve suspiro antes de anunciar as más notícias: “Desculpe, chefe… Brahim Labatt cometeu suicídio sete ou oito anos atrás. Por enforcamento. Que Deus tenha misericórdia de todos nós!”.

Hamdouch assentiu com a cabeça, com um esgar nos lábios — era como agradecia seus subordinados —, depois perguntou: “Temos certeza de que foi suicídio?”.

“Só Deus sabe, chefe.”

“E fora Deus?”, Hamdouch retrucou, impaciente. A resposta de Mouss beirava a blasfêmia; onde já se viu um computador invocar o nome de Deus? “Quero fatos e números, deixe Deus para seus especialistas, como os alfaquis.”

“Seu antecessor, o inspetor Madani, arquivou o caso como suicídio. O pobre pintor tinha…”

“Espere!”, disse Hamdouch, espantado. “Quer dizer que Madani arquivou o caso?”

“Sim, e o arquivou imediatamente… Na verdade, bem rápido. O caso não tinha nada de suspeito.”

“Ótimo, isso é tudo. Está dispensado.”

Ba Mouss assentiu com a cabeça sem dizer qualquer palavra e se retirou.

O inspetor começou a esfregar a testa freneticamente com a ponta dos dedos da mão direita. Sentia o início de enxaqueca, sinal de que uma intuição se aproximava, do tipo que em outros tempos o ajudara a desvendar casos especialmente difíceis. Sua falecida esposa, Hélène, meio brincando, meio afetuosa, costumava chamar esses episódios de “les migraines de mon Maigret”. Ha, ha. Ele devia o sucesso da carreira à intuição. Sua mais recente transferência da cidade de Safi a Marraquexe fora uma bela promoção por ter solucionado diversos crimes, entre eles o do “Açougueiro de Hay el-Majd”, que havia saído em todos os jornais e aterrorizado a população.

O que deixava sua mente em chamas no momento era uma coincidência de que acabava de se dar conta: o homem do sonho que tentara enfiar um saco em sua cabeça…

Mas, antes disso… vamos do começo: Madani, o ex-chefe de polícia, tinha sido forçado a se aposentar depois de um escândalo — desvio de recursos públicos, tudo uma grande confusão — do qual não participou diretamente, mas acabou implicado por tentar acobertar o principal beneficiário; que era ninguém mais, ninguém menos que o ex-paxá Moulay Mimoun.

Portanto, há dois suspeitos nessa história, além do enforcado. E um quadro ligando os três.

Hamdouch começou a se lembrar do homem que no sonho tentava enfiar o saco em sua cabeça, e voilà: era Madani! Hamdouch o reconhecera na pintura e agora o ex-policial ressurgia no meio da noite, do fundo de seu subconsciente, parecendo querer matá-lo. “Essa história está se complicando”, murmurou.

O inspetor saiu correndo do gabinete, caminhou a passos firmes pela rua Fatima Zahra e virou à esquerda em direção ao restaurante. Àquela hora da tarde o lugar estava praticamente vazio. Um gato dormia encolhido no canto, e apenas três turistas franceses demoravam-se com seus cafés. Ignorando a expressão de estranhamento do proprietário — por que raios Hamdouch tinha voltado? —, o inspetor seguiu direto para a pintura, a fim de confirmar sua intuição.

Sim, não havia dúvida de que a pessoa representada ao lado do belo cavalo do paxá era de fato Madani. Era possível reconhecer seu rosto repulsivo, mesmo pintado de maneira grosseira, como uma caricatura. No entanto, a própria natureza parecia já ter se encarregado de caricaturar aquele homem horrendo e corrupto. O pintor nem precisou se esforçar muito.

O inspetor notou mais um detalhe que fez piorar sua enxaqueca. Considerando que todos os personagens tinham o olhar carregado — por falta de adjetivo melhor —, ainda assim havia uma exceção: Madani, o ex-chefe de polícia, para quem Hamdouch agora voltava toda a sua atenção, não estava olhando para o paxá; ele encarava o observador da obra. Naquele exato momento, Madani parecia examinar o rosto do homem que o sucedera: Hamdouch. Sua expressão revelava perplexidade, misturada com medo e certa altivez, além de… algo mais. O que seria?

E outra coisa: a mão direita de Madani, que dava a impressão de acariciar o pescoço do cavalo, na verdade estava sobre a mão esquerda do paxá Moulay Mimoun. Os dois, com as mãos juntas, pareciam enfrentar a fúria da multidão.

Sim, fúria! Era o que significavam os olhares “carregados” que Hamdouch notara. Era isso! Evidentemente, o falecido Labatt estava longe de ser um Rembrandt, afinal nem sempre conseguira pintar o que queria, mas estava claro que era “fúria” o que pretendia mostrar no rosto daqueles figurantes, exceto no dos dois protagonistas: o paxá e o ex-chefe de polícia.

O inspetor se virou para os três turistas, abriu um sorriso cordial, apesar da dor que lhe partia o crânio, e lançou um animado: “Bienvenue à Marrakech!”.

Ele falou em francês, com o “r” vibrante. Surpresos, os três homens hesitaram alguns segundos, para se certificar de que aquele homem elegante, de cabelo grisalho e bigode bem aparado, não era mais um pedinte, um inconveniente ou ainda um Clark Gable ressurgido dos mortos. Isso feito, responderam à sua saudação: “Merci, monsieur…?”.

“Hamdouch, a seu dispor.” Houve uma pausa. “Sou um amante da pintura e gostaria de pedir a opinião dos senhores”, disse enquanto indicava a pintura como se fizesse um convite. “O que acham desta?”

Entretidos com essa surpresa na encantadora cidade de Marraquexe, os três homens se levantaram e foram até a pintura. Haviam bebido duas boas garrafas de Volubilia e, animados, decidiram espontaneamente — sem combinar nada — bancar os especialistas. Poderia ser divertido, estavam de férias e teriam uma história para contar quando voltassem a Paris. Então, seguiu-se um festival de frases prontas em tom afetado.

“Essa luz, senhores! Essa luz… há algo aqui de Claude Gellée, mais conhecido como Le Lorrain…”

“Vejam o drapeado daquela jelaba naquele canto… é maravilhoso.”

“E esse cavalo, a energia, o movimento… é Delacroix puro! Veja este nobre cavaleiro… não seria o seu rei?”

O inspetor, que estava chegando ao limite de sua paciência por causa da enxaqueca, resolveu acabar com a festa: “Senhores, acalmem-se! Se me permitem, gostaria de lhes fazer uma única pergunta. O que os senhores veem nos olhos desses homens todos? Esqueçam o cavaleiro, interessa-me saber dos outros”.

O trio de turistas começou a trabalhar. Interromperam sua pantomina, examinaram os rostos congelados na pintura, e o veredicto foi unânime: “Oh là là, eles não parecem felizes, não parecem amigáveis de forma alguma. Eu diria até que estão furiosos”.

Hamdouch, satisfeito, apontou para um sujeito específico: “E este aqui?”. Indicava o ex-chefe de polícia, Madani. Os três turistas aproximaram o rosto, quase tocando a tela com o nariz. Desta vez, sim, suas impressões foram distintas.

“Um sujeito asqueroso”, disse o primeiro.

“Arrogante”, continuou o segundo.

O terceiro, um ruivo desengonçado, levou algum tempo para se manifestar: “Não, senhores. Ele tem um ar de culpa. Como um delinquente pego com a boca na botija. Um infeliz que se entrega pela expressão do rosto”.

Os quatro ficaram examinando a cara asquerosa daquela figura. Não havia dúvida. Isso mesmo: ele tinha um ar de culpa.

Bravo, Christian!”, exclamaram os companheiros do ruivo, que reagiu com modéstia.

Satisfeito, Hamdouch agradeceu aos franceses pelos comentários. Um deles tomou coragem e disse, sorrindo: “E agora o senhor vai tentar nos vender esse lixo? Boa técnica! Bravo! Caímos feito patinhos. Quanto é?”.

Com ar glacial, Hamdouch respondeu: “Não sou vendedor de quadros. E, a propósito, este… isto não me pertence. Au revoir, messieurs!”.

O trio voltou a seu lugar, animados com a apresentação. No momento em que o inspetor estava saindo, o tal Christian o chamou novamente: “Ei, tem mais uma coisa que não vai bem nesse seu lixo de quadro… desculpe, na sua pintura”.

O ruivo se levantou para apontar, embaixo à esquerda, um detalhe.

“Não sou nenhum especialista, obviamente, muito pelo contrário! Mas nunca vi um zellige numa muralha. Este mosaico aqui é um zellige, não?”

Hamdouch, que já estava na porta de saída, se virou e foi até o quadro. Com o indicador tocou o ponto que Christian mostrara. “É isso mesmo”, murmurou, perplexo.

“Um zellige amarelo na parede exterior de uma muralha não faz nenhum sentido.”

Como não tinha visto esse detalhe? Estaria perdendo sua capacidade de observação? Ficou constrangido por alguns instantes, mas não deixou transparecer.

Christian voltou para a mesa, onde seus companheiros o provocavam, alegres: “Que olho ele tem! Que olho clínico!”.

Enquanto isso, Hamdouch saía de cena, perdido em seus pensamentos.

De volta a seu gabinete, deixou a porta aberta e consultou seu computador: “Ba Mouss!”.

Sua voz ecoou por toda a delegacia, e um pequeno homem surgiu quase instantaneamente, os olhos mais verdes do que nunca. Esse tom melancólico da cor parecia tomar seu rosto inteiro, de modo que ele parecia um minúsculo marciano despertado da sesta.

“Quero que você me conte tudo que sabe sobre o paxá Moulay Mimoun”, bradou o inspetor. “Tudo! Fatos, devaneios, rumores, fofocas… tudo!”

Ba Mouss suspirou e começou a relatar a rica vida do paxá.

O inspetor deixou a enxurrada de informações fluir, interrompendo o computador humano aqui e ali para esclarecimentos. Quando Ba Mouss acabou, Hamdouch se manteve em silêncio por um instante. Então disse: “Essa história sobre o assassinato de um rival. Pode me falar mais disso?”.

“É só um rumor, chefe. E não há nenhuma prova de que houve assassinato. Um funileiro, um tal de Dadouchi, tinha pedido a mão de uma linda mulher do bairro de Kennaria, o que lhe foi concedido. Os preparativos para o casamento estavam indo bem… para azar do funileiro! Acontece que o paxá Moulay Mimoun tinha interesse nessa mesma mulher. E um dia Dadouchi desapareceu. Ele saiu para atender um cliente e não voltou. Nunca mais foi visto. Então, após alguns meses, o paxá levou a moça para o seu harém. No entanto, ele a rejeitou meses depois, para a ira e a vergonha da família dela.” Ba Mouss baixou a voz. “E se espalhou o boato de que havia sido ele, o paxá, quem sumiu com o artesão.”

Cui bono?”, Hamdouch murmurou. O inspetor conhecia umas poucas expressões latinas de grande valor prático que circulavam na École de Police, um legado dos franceses.

“O que disse?”

“Nada, nada, continue.”

“Eu estava dizendo que circulava à boca pequena que o paxá foi quem sumiu com o Dadouchi. E tem mais: houve rumores de que existia a prova do crime por aí e que um dia ela viria à tona.” Ba Mouss hesitou um instante, depois soltou: “Falava-se que a verdade seria revelada por um pássaro mágico”.

Como Ba Mouss esperava, o chefe levantou os ombros, irritado.

“Pássaro mágico? Por que não um elefante voador? Você acha que estamos nas Mil e uma noites? Que ignorância! É a polícia, e não os pássaros, que encontra provas!”

Sem entrar no debate sobre ciência e superstição — debate que o chefe sempre ganhava pela força dos argumentos e das ameaças —, Ba Mouss concluiu: “Voilà. Isso é tudo que se sabe da história”.

“Obrigado. Está dispensado.”

O computador pareceu ter sido desligado e saiu da sala. O inspetor fechou a porta e se acomodou confortavelmente à mesa, o queixo repousado sobre as mãos juntas, e começou a refletir. A história do pássaro mágico o incomodava e, quanto mais tentava ignorá-la, mais pensava nela. Começou a imaginar algo como Simurgue, uma criatura alada colorida e gigantesca que subia aos céus e em seguida mergulhava de volta à Terra carregando uma serpente que se retorcia com violência em suas garras. Estou perdendo tempo com uma lenda idiota, pensou, incomodado.

Então se lembrou de uma expressão que Hélène às vezes usava: oiseau jacasseur. Ela teve que lhe explicar o significado de jacasseur: falar muito depressa, de modo irritante.

Um pássaro falante?

Isso lhe lembrava alguma coisa. Fechou os olhos e se concentrou na imagem. Memórias de sua infância e adolescência, coisas que tinha lido e ouvido iam aparecendo numa espécie de auréola sobre ele…

Ilustração: FP Rodrigues

Após alguns instantes, abriu os olhos e sacudiu a cabeça. Em seguida, pegou o telefone e, depois das saudações habituais, perguntou a seu interlocutor: “Nós temos acesso a uma lista de pertences do paxá anterior ou a objetos que pertenceram a ele? Isso mesmo, Moulay Mimoun… Podemos ver? Vai levar muito tempo? Eu tenho todo o tempo do mundo!”, ele disse, deixando escapar uma risada levemente amarga, ao pensar em sua condição de viúvo sem filhos. “Pode me mandar por um chaouch, algum funcionário de confiança?”

Desligou o telefone, acendeu um cigarro e abriu ao acaso uma das pastas espalhadas na mesa.

Dias depois, Hamdouch recebeu a lista que solicitara. Correu o dedo muito rapidamente pela página até parar em um nome — o nome de um riad que pertencia ao paxá.

“Bingo!”, exclamou em voz alta, sorrindo.

No fim da viela, a maioria dos transeuntes costumava virar à esquerda. Raramente alguém entrava à direita. No chão, marcas escuras deixadas por centenas de motocicletas ao longo dos anos indicavam apenas uma direção: esquerda. Era o caminho que ia dar em Bab Doukkala, a principal via no interior da medina.

O inspetor, acompanhado de seu assistente Hariri, virou decidido à direita. Ele sabia aonde estava indo.

Em frente ao riad, um vigia idoso aguardava sentado em uma banqueta. Vendo Hamdouch e Hariri se aproximar, levantou-se e discretamente espanou a poeira da roupa, como se estivesse se colocando em posição de sentido.

Salam aleikum!”, saudou o inspetor.

Aleikum assalam, Ssi inspetor”, respondeu o vigia.

“Os franceses estão em casa?”

“Não, sidi, eles saíram para comprar frutas e verduras. Mas pode entrar.”

“Tudo bem, vou esperar eles voltarem. E jamais deixe ninguém entrar numa casa na ausência de seus proprietários. Nem mesmo eu! A lei proíbe.”

Quinze minutos depois, os proprietários, François e Cécile, voltaram do souk. O inspetor os cumprimentou sorrindo e com um tipo de saudação, levando dois dedos à testa. Depois apresentou a si e a seu assistente.

“Polícia? Espero que não seja nada grave”, disse François.

“Não, não”, tranquilizou-os o inspetor. “Apenas gostaria de dar uma olhada no riad, com a sua permissão, claro. Se trata de um caso antigo que não tem nenhuma relação com vocês. Aconteceu muito antes de comprarem…” Hamdouch fez uma pausa e gesticulou em direção à porta da antiga propriedade.

François e Cécile trocaram olhares e deram de ombros ao mesmo tempo.

“Bem, podem entrar”, disse François. “Estamos sem chá, podemos oferecer um suco.”

“Não, obrigado.”

Os quatro entraram na casa, o vigia permaneceu do lado de fora. O inspetor começou a vasculhar, virando a cabeça para todo e qualquer canto.

“O senhor está procurando alguma coisa?”, perguntou François.

“Sim, estou atrás de um trecho de parede revestido de zellige”, Hamdouch respondeu. “De tom amarelo.”

Un petit pan de mur jaune”, brincou Cécile.

“O quê?”

“Nada, é só uma referência literária, uma frase de Proust no Em busca do tempo perdido”, disse Cécile. “Mas há uma parede semelhante a essa aqui.”

“Busca? Esse é o nome do meu departamento”, observou o inspetor com ar de aprovação. “O seu Proust… ele escreveu sobre Marraquexe?”

“Não, não… o pedaço de parede amarela é em Delft, na Holanda, a cidade natal de…”

Hamdouch levantou a mão, interrompendo Cécile.

“A Holanda não está na minha jurisdição. Deixe para lá. Onde é a parede?”

Eles o levaram até um dos quartos laterais, deixando Hariri para trás. Metade de uma das paredes estava revestida de zellige ocre. Curiosamente, não havia outra igual, o que a fazia parecer um teste que acabou não agradando e que também não valia a pena desfazer. Hamdouch analisou a parede com atenção, ajoelhou-se para examinar a base e depois bateu em diferentes pontos, colando a orelha à superfície. Hariri e o casal francês assistiam a tudo perplexos.

“O senhor acha que há alguma coisa aí atrás?”, perguntou Cécile. Sem aguardar a resposta, ela se virou para o marido. “Você se lembra dos Hébert? Eles compraram uma casa antiga em Paris, no Marais. Quando faziam uma reforma, descobriram uma parede falsa e, atrás dela, numa maleta, um violino valiosíssimo. Um Guarneri, acho.”

“Podemos ficar ricos!”, disse François.

O inspetor, ajoelhado para examinar a parede, ergueu-se com dificuldade e respondeu: “Não sei se o senhor vai ficar rico no mercado de ossos. Se conseguir, será uma sorte: há o esqueleto de um funileiro atrás desta parede”.

Cécile cambaleou e tombou numa poltrona, enquanto François perguntava, espantado: “Funileiro? É algum animal?”.

Hamdouch deu de ombros e pediu que seu assistente providenciasse um pedreiro e dois policiais robustos — sem se esquecer das maletas, dos martelos e de um saco plástico bem grande!

Enquanto François, abaixado, cuidava de Cécile, que recobrava a consciência aos poucos, o inspetor lhes explicava, sereno: “Avec votre permission, faremos um buraco nesta parede para retirar o cadáver escondido aí. Mas não se preocupem, fecharemos tudo novamente”.

Hamdouch saiu para fumar um cigarro à sombra da laranjeira.

Alguns dias depois, Hamdouch estava sentado em sua cadeira de sempre no restaurante — os restos de um tagine de frango com azeitonas à sua frente. Com a fome saciada, soltou um arroto discreto e pediu um chá de hortelã. Por fim, concordou em revelar o caso para o dono do restaurante, que o rodeara a tarde inteira.

“Você sabia que Brahim Labatt também era encanador? Provavelmente foi contratado para fazer alguns bicos no riad, e, discreto como era, esqueceram completamente que ele estava lá. Sem querer, Labatt acabou presenciando o assassinato do funileiro pelo paxá ou por seus capangas. Eles atraíram o rapaz sob o pretexto de uma encomenda de bandejas de cobre ou algo do tipo. Pobre homem. Espero que não o tenham emparedado vivo. Do contrário, que fim atroz… De qualquer forma, Labatt escapou dali sem ninguém se dar conta e em poucas semanas concluiu a tela delatora. De certa forma, era a única maneira de expressar o que vira…”

“Mas por que ele não denunciou o paxá à polícia?”, perguntou o dono do restaurante.

“Naquela época, ninguém confiava na polícia, muito menos um simples trabalhador, un fils du peuple como Labatt. E mais: enfrentar o paxá… poucos ousariam.”

“Que época perversa”, lamentou o dono do restaurante.

“Contudo, ele não conseguiu guardar um segredo tão sombrio e contou a alguém. Disse ter provas para pôr tudo abaixo. Mas seu confidente deu com a língua nos dentes e o boato se espalhou. Madani soube e, como era mancomunado com o paxá, logo o avisou. O pintor foi preso discretamente — e sem dúvida torturado —, depois terminaram o serviço enforcando-o e fazendo parecer suicídio”, concluiu o inspetor. “Revistaram sua casa de cima a baixo em busca de documentos que incriminassem o paxá. Estavam desesperados para encontrar um caderno, uma carta, algumas palavras soltas num pedaço de papel, mas ninguém pensou nas telas — nas pinturas que enfeitavam as paredes! Foi ali que ele fez sua detalhada denúncia. Mesmo assim, era necessário saber observar…”

“Mas como o senhor teve a ideia de vasculhar aquele riad? Como soube?”

Hamdouch sorriu. “Riad Boulboul? ‘Boulboul’ não lembra você alguma coisa? O pássaro falante das Mil e uma noites? Tão logo soube que a casa havia pertencido a Moulay Mimoun, entendi a origem da história do pássaro mágico que um dia revelaria tudo. Labatt teria dito ‘boulboul’ e, de boca em boca a referência ao riad se perdeu; as pessoas preferiram uma explicação fantasiosa a um simples endereço real. Mas eu, eu ajo com a razão. Sou cartésien, como dizia minha esposa, que Deus a tenha em Sua misericórdia.”

“O que acontecerá com o ex-paxá? E com Madani, o ex-chefe de polícia?”

Hamdouch deu de ombros. “Nada. Nada de mais. Moulay Mimoun sempre teve costas quentes nas altas instâncias e, em todo caso, está velho e senil, já esqueceu tudo. Que juiz reabriria esse tipo de caso? Não se pode mandar um velho gagá para a prisão. Quanto a Madani, já está aposentado. Se Moulay Mimoun está absolvido, não há razão para se preocupar com seu cúmplice… sua âme damnée — alma condenada — como dizem os franceses. Conhece a expressão?”

“Não”, suspirou Driss Bencheikh. “Estou um pouco desapontado de que a justiça não seja feita.”

“Ah, mas de certa forma, ela foi feita. A reputação desses dois infelizes está arruinada para sempre. Vão terminar a vida envergonhados, odiados por todos, mesmo pelos mais próximos, esperando ir direto para o inferno.”

“São dois… como era? Ânes damnés.”

“Bravo, você aprende rápido. Mas ainda precisa praticar um pouco a pronúncia”, brincou o inspetor. “É âmes, e não ânes… são almas e não burros. Ainda que Madani sempre tenha sido burro, na minha opinião; é de se pensar como ele conseguiu fazer carreira. Minha hipótese é que foi prestando favores aos poderosos. Como nesse triste caso.”

O inspetor bebeu um longo gole de seu chá e apontou para o dono do restaurante. “Ainda há uma peça desse mistério que preciso resolver. A pintura não estava aqui quando comecei a frequentar seu restaurante. Por que você só pendurou o quadro na minha frente há pouco tempo?”

Driss Bencheikh balançou a cabeça, puxou uma cadeira e se sentou ao lado do inspetor.

“Bem, achei que o senhor tivesse adivinhado.”

“Não. Como eu disse, esse é o último mistério.”

Então o dono do restaurante continuou.

“Brahim Labatt era primo da minha esposa, e acabei herdando esta tela, entre outras. Eu sabia que ela continha um segredo, porque foi seu último trabalho, e era muito diferente do que ele pintava. Não era algo aleatório… a pintura devia significar alguma coisa. Nunca acreditei que Brahim tivesse se matado, mas também não conseguia imaginar o que tinha acontecido. Quando o senhor começou a almoçar aqui todos os dias, agarrei a oportunidade. Uma mente de investigador como a sua certamente iria decifrar a tela.”

O inspetor permaneceu em silêncio por alguns instantes, depois levantou o copo na direção do quadro. O dono do restaurante o imitou e, com os olhos marejados, murmurou: “Ao artista!”.

Fouad Laroui

Nasceu em 1958, em Oujda (Marrocos). Doutor em Ciências Econômicas, atualmente leciona Literatura Francesa na Universidade de Amsterdã. Escreveu mais de dez romances, com destaque para Les dents du topographe, ganhador do prêmio Albert-Camus em (1996), e Les Tribulations du dernier Sijilmassi, que venceu o prêmio Jean Giono (2014). Publicou diversas coletâneas de contos, entre elas L’Étrange Affaire du pantalon de Dassoukine, indicada ao prêmio Goncourt na categoria Conto, em 2013. Também foi condecorado com a medalha Grand prix de la Francophonie em 2014 pela Academia Francesa. O conto A tela misteriosa integra a coletânea Marraquexe noir, organizada por Yassin Adnan, a ser lançada em breve pela Tabla.

Rascunho