A praga dos jacarés

Conto inédito de Pedro Tebyriçá
Ilustração: Denny Chang
01/09/2022

É noite. Em algum lugar é manhã. Em algum lugar é tarde. Ninguém nas ruas. Faz noventas dias que não saio de casa (ou seriam noventa anos?) Estou só com o meu cachorro, ilhado na sala e na cozinha. No quarto tem um morto, não ouso abrir a porta. Faço rodízio das roupas que estou usando com as que estão penduradas no varal, a minha televisão fica na sala, não preciso entrar no quarto. As ruas do mundo inteiro estão desertas, os jacarés começaram a sair dos esgotos das cidades e tomaram as calçadas. Eles se alimentam de órgãos humanos: rins, pâncreas, pulmões. São minúsculos, menores que grãos de areia, não são visíveis mas são vorazes. Meu pai me dizia que viver é atravessar diariamente um rio onde habita um jacaré, quem consegue atravessar o rio sem ser devorado está apto para a vida, mesmo que nem desconfie da existência do jacaré, afinal ele não consegue devorar todo mundo ao mesmo tempo e são muitas as pessoas que cruzam o rio durante anos sem sequer se aperceberem dele. Mas agora eles estão soltos por todas as ruas, os jacarés, e todo mundo sabe deles e permanece em casa, eu acho, pois olho pelas janelas os prédios vizinhos e não vejo vivalma, só janelas vazias com suas cortinas e persianas, numa delas vejo um vaso de flor, quem cuida?, certamente alguém lá dentro. Mesmo assim eu não me sinto só, eu tenho o meu cachorro e às vezes recebo visitas, são breves, muito breves essas visitas, mas eu as recebo. Ontem quando voltei do banheiro tinha uma senhora sentada no sofá da sala. Ela lia o jornal, parou por um instante, olhou para mim e logo retomou a leitura. Dei um pulo na cozinha e quando voltei ela não estava mais lá. Não são sempre simpáticas essas visitas, mas de vez em quando eu as recebo.

A campainha toca, eu não disse que recebo visitas? Era o meu cachorro, deve ter escapulido lá pra fora quando a senhora saiu. Anda, entra. Eu nunca estou sozinho, eu tenho o meu cachorro.

É manhã, em algum lugar é tarde, em algum lugar é noite. Ninguém nas ruas. Os dias são sempre iguais, já não sei se hoje é amanhã ou ontem. Eu faço café, leio o jornal. Não apareceu ninguém para tomar café comigo. Não tem importância, eu tenho o meu cachorro, ele come na sua cumbuquinha e me faz companhia. Semana passada (ou foi mês passado?) eu encontrei o Presidente sentado aqui na mesa da copa, de terno azul marinho e gravata escura, bem penteado, seus olhos claros perdidos no infinito, sem expressão (devia estar com a cabeça longe, absorvido pelos problemas da nação). Eu lhe ofereci café, procurei uma lata de leite condensado, porque sei que ele gosta de passar no pão, mas não tinha. Ele aceitou e bebeu o café sem falar nenhuma palavra, os olhos longe, absolutamente mudo. Assim que me distraí um instante ele sumiu, deve ter ido para Brasília governar. Só os serviços essenciais estão funcionando e eu acho que a presidência de um país é um serviço essencial. Se não for, devia ser.

Ele nunca mais voltou para me ver, o Presidente, deve ser porque não tinha leite condensado.

Preciso ir ao supermercado comprar comida que acabou. Vou aproveitar e comprar uma lata de leite condensado que deixarei guardada no armário caso o Presidente venha tomar café de novo comigo. Ouviu bem? É com você mesmo que eu estou falando. Meu cachorro me lança um olhar sonso, fingindo que não sabe do que se trata. De vez em quando some alguma coisa da despensa e eu acho que é ele que pega escondido. A ração tem todos os nutrientes que ele precisa, mas é muito insossa, ele deve gostar de comer uma coisinha diferente de vez em quando. Ouvi dizer, não sei se é verdade, que na China eles resolveram o problema da fome daquele povo todo com uma ração de gente, parecida com uma ração de cachorro, com todos os nutrientes que eles precisam, e distribuíram tudo nas fábricas, nos campos, nas escolas, em todos os lugares. As pessoas só podem comer ração, não podem comer outra coisa, elas precisam ficar fortes para poderem trabalhar, é uma questão de Estado. Ninguém mais passa fome nem fica doente e eles trabalham com muita disposição. E tudo o que eles produzem eles vendem para os outros países. Eles só ficam com a ração deles, me disseram.

Eu preciso cobrir o rosto com uma máscara para o jacaré não me reconhecer e eu poder sair na rua sem ele me pegar. Até agora tem funcionado, o jacaré ainda não me reconheceu e os mortos-vivos te deixam em paz se você não estiver carregando sacolas de compras. Eles moram nas ruas debaixo das sacadas, normalmente andam sozinhos que nem zumbis, mas às vezes formam bandos e ficam de tocaia na porta dos supermercados esperando as pessoas saírem para atacarem. Tem que ficar atento e tomar muito cuidado. Da última vez em que fui às compras, quando eu voltava tive que jogar uma sacola no chão para atraí-los e conseguir uma brecha para passar com o resto. O estratagema deu certo, os mortos-vivos partiram todos como um cardume de piranhas vorazes para cima da sacola no chão. Não sobrou nada, só vestígios de plástico picado. Ainda bem que não foi o uísque que eu larguei, pode me faltar tudo, menos uísque. Se eu fosse o presidente da China eu dava uma raçãozinha de uísque para o povo também, eles iam trabalhar com mais alegria e a produtividade ia aumentar, tenho certeza. Uísque é essencial.

Hora de passear com o cachorro, ele senta a meus pés e me olha. Eu não preciso botar máscara nele, os jacarés não gostam de cachorros, só de gente, é o que dizem. Na rua se você passar por um morto-vivo e estiver com um cachorro, eles não te atacam, nem vêm pedir nada. Eles sabem que você está só levando o cachorro para fazer as necessidades dele e não precisa carregar dinheiro para isso. A maioria dos mortos-vivos não usa máscara e às vezes o jacaré come um deles, mas eles são tantos que isso não faz muita diferença.

A porta do meu quarto está sempre fechada, eu não abro de jeito nenhum. Tem um morto dormindo na minha cama, às vezes ouço os seus roncos. Já não sei mais há quanto tempo ele está lá. Outro dia, eu vi pela janela, parou o carro de uma funerária na porta do prédio. Era uma camionete grande, escura. Eu pensei que eles viessem para cá para pegar o morto. Fiquei sentado no sofá esperando e nada. Resolvi abrir a porta para ver se aparecia alguém e uma barata enorme entrou correndo toda estrambelhada na minha sala. Eu suporto ter um morto no quarto, mas barata dentro de casa, não! Tudo tem um limite. Tirei o meu sapato e fiquei que nem um maluco atrás dela dando sapatadas. Na terceira, ploft!, acertei. Aí é que vem a parte mais difícil: tirar aquela gosma do chão (ainda bem que não foi em cima do tapete). Arranjei um jornal velho e Deus sabe o esforço que fiz para removê-la. Tive que pegar ainda um outro pedaço de jornal para terminar de limpar o chão. O meu cachorro parado, só me olhando. Imprestável!

Quando olhei pela janela de novo o carro da funerária não estava mais lá. O morto continua no quarto, presumo.

A campainha toca de novo, o cachorro late, mas agora eu não me levanto mais para abrir. E se for o jacaré?

Esse negócio de ficar em casa está me dando vontade de fumar. Eu fumei a vida toda mas já faz dez anos que eu larguei. Tem duas coisas que são muito difíceis de fazer e é necessário ter muita força de vontade para ambas: começar e parar de fumar. As primeiras tragadas que você dá quando nunca fumou antes ardem como fogo nos pulmões e te dão uma zonzeira imediata como se você tivesse levado uma paulada na cabeça. Tem que ter persistência, muita persistência, até você conseguir que os teus pulmões recebam a fumaça como um néctar dos deuses, se é que pulmão pode receber algum néctar. Depois, quando você resolve parar é outra dureza. É como ter sede e aguentar sem beber água. Por tempo indeterminado. Demora até a sede passar e você voltar a conseguir se concentrar em outras coisas. Mesmo assim a vontade de fumar nunca te abandona totalmente e de vez em quando a sede vem. Será que o morto tem algum cigarro no bolso? Melhor não, deixa pra lá, parece que o jacaré adora um pulmão de fumante.

Essa semana, não sei se ontem ou amanhã, quando eu levei meu cachorro na rua para fazer as necessidades dele eu cruzei com um homem sem cabeça. Ele andava com uma bengalinha branca de cego porque com certeza não enxergava. O curioso é que quando ele passou por mim inclinou a cabeça que ele não tinha na minha direção em sinal de deferência. Muito educado, ele.

O telefone toca. Era a minha mãe. Eu não falava com ela desde que ela morreu há dez anos. Me disse que está passando muito bem, mas está com saudade dos filhos, não recebe nenhuma visita. Eu falei da pandemia, dessa praga, está cheio de jacarés nas ruas, mas que quando isso passasse a primeira coisa que eu faria seria visitá-la. Ela ficou muito assustada, não conseguia compreender que a rua está cheia de jacarés. Como assim? Jacarés? É, mãe, jacarés. A gente tem que evitar sair de casa, só o Presidente e quem faz serviços essenciais é que podem sair. Eu só passeio com o cachorro e vou ao supermercado quando a comida acaba. E tem que ser de máscara. Não dá pra fazer mais nada. Meu filho, quando eu vou te ver então? Não sei, mãe, não sei. Fica calma que essa coisa passa.

Ela disse pra mim que está calma, mas eu acho que ela está morrendo de medo de morrer outra vez.

Droga! O banheiro está ocupado e eu estou doido pra evacuar. Já é a terceira vez que eu preciso evacuar hoje e isso me preocupa, ouvi dizer que o jacaré prefere quem está com o intestino solto. Droga!

Hoje eu vi ele de novo, o Presidente. Foi na televisão. Ele estava com aquele mesmo terno azul marinho que estava usando quando veio tomar café comigo. Desta vez ele foi tomar café numa padaria lá em Brasília. Estava sem máscara e cumprimentava com a mão todo mundo. O nosso Presidente é um grande homem, ele não tem medo dos jacarés, na verdade ele ignora os jacarés, ele está pouco se lixando. É muito bom ter um Presidente assim, forte, impávido. Quando será que ele vai vir tomar café comigo de novo? Já comprei uma latinha de leite condensado, está lá na despensa esperando. Meu Deus! Cadê o leite condensado? Ele estava aqui , quem pegou?

O meu cachorro me olha com cara de sonso.

Fui passear na beira da praia com o meu cachorro. A água do mar estava verde esmeralda, esmeralda mesmo. Nunca vi tão clara. Olhei para as ondas e vi um monte de surfistas. Ué, acabou o isolamento social? Aí olhei de novo e vi que não eram surfistas, era um bando de golfinhos que brincavam nas ondas aproveitando a ausência dos surfistas. As areias também formavam uma espetacular imensidão branca, absolutamente sem ninguém, nenhuma pessoa. Até que lá longe eu percebi um pontinho escuro, um único pontinho naquela brancura toda. Caminhamos na sua direção, eu e meu cachorro, e quando nos aproximamos eu vi: deitada na areia, vestida apenas com uma máscara negra, uma bela mulher tomava sol no esplendor de todo o seu corpo. Quem seria a dona de tal beleza? A máscara em seu rosto não revelava a sua face, proporcionando-lhe total privacidade em sua nudez. Meu cachorro de repente empacou, não quis mais seguir em frente. Hora de voltar, é sempre assim, ele é quem manda.

Ando pela casa sem saber pra onde ir. Me recosto no sofá e vejo na janela um céu imaculadamente azul.

Outra manhã solitária, o Presidente nunca mais apareceu, melhor assim, ainda não comprei outra lata de leite condensado. Será que é bom pão com leite condensado? Nunca experimentei. Mas de uma coisa eu tenho certeza, quem toma no café da manhã pão com leite condensado é uma pessoa simples, sem frescuras, só pode ser bom caráter e eu fico feliz de ter na presidência, um serviço essencial, um homem simples e destemido, que ignora o jacaré. Tomo o meu café sozinho e estranho o silêncio, está tudo muito quieto, nem do quarto do morto vem algum barulho. Vou ligar a televisão para ter alguma companhia. Que sorte! O Presidente está na televisão, ele está em frente ao palácio, sem máscara, falando e cumprimentando os populares. Que sorte a nossa ter um Presidente assim, que ama o seu povo.

Vou tomar um copo d’água, não sai daí que eu volto já. Ué!?, cadê você? Eu não falei que voltava?

Sozinho de novo. É noite, resolvo não ligar a televisão, vou ler um pouquinho. O romance que eu tinha começado ficou no quarto do morto, mas por sorte, na estante aqui da sala eu tenho a obra completa do Machado de Assis. Meu bom e velho amigo Machadinho. A primeira mulher pela qual eu me apaixonei na vida foi a Capitu. Eu tinha catorze anos quando a conheci e ela escreveu meu nome ao lado do dela no muro do quintal. Eu nunca mais me esqueci, eu era Bentinho. Vim depois a conhecer outras mulheres, mas nenhuma com aquele misterioso olhar oblíquo. Olhos de ressaca. O mar tem estado calmo nesses dias mas eu nunca me engano, a ressaca sempre vem, é a sua verdadeira natureza.

Meia noite, hora da Missa do Galo, melhor dormir. Me ajeito no sofá, no quarto dorme um morto.

Noite outra vez? Mas nem houve tarde, nem manhã. O tempo enlouqueceu, anoitece a seu bel-prazer. Ouço um troar vindo das ruas. Parece que batem panelas. Ou serão os sapos-bois? Na minha infância eu passava os verões na nossa casa da serra, em Petrópolis, com toda a minha família. Ao lado havia uma outra casa, sinistra, com um pequeno lago em seu quintal. Era mal-assombrada, diziam. Quando a noite chegava os sapos-bois do pequeno lago começavam a martelar de todos os lados: tóin!,tóin! Uma fina neblina descia e não se via mais nada, só se ouvia os sapos-bois, tóin!, tóin! Era o sinal. Naquele tempo não tinha os jacarés, mas àquela hora ninguém mais saía às ruas, era a hora das assombrações passearem. Eu ficava com muito medo e não saía de perto da minha mãe.

Eu vou te visitar, mãe, quando os jacarés forem embora eu vou te visitar. Prometo! (há quanto tempo faço essa promessa?).

Hora do almoço, não sei de quando, se de hoje, de ontem ou de amanhã. Os dias são sempre iguais e o tempo anda se confundindo. Um domingo pode vir depois de uma segunda-feira, uma segunda-feira na véspera da quinta e o jantar pode acontecer antes do almoço. Teve uma semana que foi noite todos os dias. Uma escuridão! Mas não tem como se perder, todos os dias são iguais, não importa se hoje é ontem ou amanhã. Vou fazer feijão, eu agora ando fazendo feijão, que eu adoro. Se inventassem para nós aqui no Brasil uma ração de gente que nem na China e ela fosse feita de feijão eu não ia me incomodar. Na verdade estou passando estes tempos à base de arroz e feijão. Não são só os dias que são iguais, os almoços também.

O sol está nascendo agora, não me lembro se estou indo dormir ou se já acordei. Feliz é o meu cachorro que ignora o tempo.

Minha diarista não vem mais, ela vinha duas vezes por semana, fazia todo o serviço da casa e deixava comida pronta. Ela nunca mais apareceu, será que foi comida pelo jacaré? Tempos estranhos.

Vou agora botar as roupas que eu estou usando para lavar e trocar pelas do varal. Eu não entro no meu quarto para pegar mais roupa de jeito nenhum, na cama tem um morto deitado. Por que não mandam logo um rabecão para vir pegá-lo? Ele quase não atrapalha, é verdade, mas ele ocupa o meu quarto e eu não vou entrar lá enquanto não vierem buscá-lo.

O inventor da máquina de lavar devia ser celebrado, ele é um gênio. É só botar a roupa lá, um punhado de sabão, apertar um botãozinho e pronto. Ela faz tudo sozinha e até dá uma ligeira secada. Depois é pendurar no varal bem esticadinha, que é para não ter que precisar passar. Passar é o grande xis da questão. Estou usando só camisetas e bermudas de algodão, elas ficam direitinho quando secam. Mas roupa branca eu deixei de usar, tem que lavar separado senão mancha. E roupa de linho também, o linho amassa muito e não dá pra ficar sem passar. Tem que ser passado e muito bem passado. Roupa de linho é só pro nhonhô da casa-grande, que tem mucamas para passá-las e repassá-las. Já faz tempo que isso aqui foi uma casa grande, agora tudo ficou pequeno e tem um morto no quarto.

O meu cachorro! Quase que eu me esqueço, anda, vamos fazer pipi. Vem!

Lá fora chove, a chuva lembra que existe “lá fora”. Os mortos-vivos se abrigam sob as marquises, o jacaré atravessa a rua indiferente à chuva. Ele tem fome.

Quem sabe eu não me sento no computador e escrevo um pouco. Deve ser bom escrever, teclar, teclar, teclar, ver as letrinhas aparecerem na tela em branco. Mas escrever o quê? Estou preso no mesmo dia há meses (ou serão anos?). A única companhia que eu tenho é o meu cachorro e o morto no quarto. Se ao menos o morto me oferecesse cigarros, eu sei que no bolso dele tem um maço, mas eu não vou entrar lá para pegar sem que ele me ofereça, e o meu cachorro não fala, só fica me olhando com cara de sonso, deve estar esperando eu comprar outra lata de leite condensado pra pegar de fininho. Só que desta vez eu te enganei, rá, rá, rá, eu já comprei o leite condensado, mas ele está escondido e eu não vou dizer onde, rá, rá, rá. É para o Presidente, ouviu bem? Para o Pre-si-den-te.

Meu Deus!, onde foi que eu escondi a lata de leite condensado? E se o Presidente aparece? Onde que eu botei, meu Deus?

O sol brilha lá fora e eu não entendo mais nada. Não sei se é manhã, tarde ou noite, só sei que o sol brilha lá fora e eu vou colocar a máscara e passear com o meu cachorro. Os mortos-vivos me olham quietos. Alguns futucam as latas de lixo atrás de comida, outros dormem nas calçadas alheios ao sol. Alguém passa apressado com uma sacola de compras na mão, os mortos-vivos não percebem. Há um certo torpor no cenário, não passam carros, nada acontece. Um pombo cisca preguiçoso bem no meio do asfalto. Às vezes é difícil acreditar que os jacarés existem.

Argh!!! À beira da calçada, entre os carros estacionados, o ânus de um morto-vivo vomita merda.

Sento de novo no computador, quantos também estarão sentados agora tentando escrever alguma coisa?

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centralizo

outro enter

alinho à direita

agora à esquerda

(divertido, isso)

Chove de novo, a janela parece uma tela onde passa um filme em rotação acelerada, as nuvens correm, abre o sol, chove, escurece, clareia, as nuvens continuam correndo ligeiras e eu sentado no sofá, faz dias que não saio do sofá.

A campainha da porta toca (ou será o telefone?). Quando eu abro me deparo com um robô, quer dizer, uma robô, eu percebi logo, mesmo antes que ela falasse alguma coisa. E ela falou e foi muito simpática comigo, disse que era do Ministério da Saúde e queria saber como eu estava me sentindo. Eu a convidei para entrar, tomar um café, mas ela disse que não tinha muito tempo, que estava fazendo uma pesquisa e que só precisava saber se estava tudo bem comigo. Eu agradeci e confirmei que estava tudo bem. Quando desliguei o telefone ela não estava mais lá. Caramba!, eu me esqueci de falar que tinha um morto no quarto, mas como é que eu podia me lembrar? Ele está sempre tão quieto, tão ausente.

Teclar, teclar, teclar. As palavras não vêm, eu não sei o que eu pretendia quando me veio essa ideia de escrever. Meu cachorro boceja a meus pés. Ouço um barulho no corredor, será que o morto se levantou? Olho pela janela, o céu está azul, os prédios em frente são os mesmos de ontem, nada mudou, tudo está como sempre esteve e sempre estará.

E os jacarés?

Peço uma pizza pelo telefone e ligo a televisão. De vez em quando o jacaré abocanha um entregador de pizza, mas eles continuam trabalhando. Eles são muito valentes, esses entregadores de pizza. O rapaz chegou rápido. Risonho, vestia uma camisa do Flamengo. Parecia que vinha de outro mundo, o mundo de quinze dias atrás. O vizinho do prédio ao lado não me deixou subir, ele disse sorridente. Está tudo meio esquisito, eu retruquei, você sabe, os jacarés, se bobear eles podem aproveitar uma brecha e subir junto com você. Não foi por isso, ele comentou sempre sorrindo, foi por causa da camisa.

Na televisão passava um jogo de futebol. Eu fiquei assistindo enquanto comia a pizza. Caramba!, não sabia que o Pelé ainda estava jogando na seleção brasileira. E o Gerson!? E o Rivelino!? Parece que é decisão, eu sou meio desligado de futebol mas decisão é decisão, a gente tem que prestigiar. Meu Deus!, ganhamos!! A copa é nossa! Brasil!! Brasil!! O Presidente vai ficar feliz, muito feliz (não tem jeito de eu lembrar onde escondi o leite condensado).

Os meus remédios acabaram. Eu não tomo tantos remédios assim, é só um pra dormir e outro pra acordar. Se eu não tomo os remédios eu durmo na hora de acordar e acordo na hora de dormir. Os tempos já estão muito confusos, é melhor não ficar sem remédios. Eu liguei para o meu médico e ele disse que ia deixar a receita na recepção de seu consultório, mas que eu não deixasse de tomar todos os cuidados na hora de ir pegar, pois eu era de grupo de risco. Eu fiquei meio sem entender o que ele quis dizer, grupo de risco?, será que se eu me masturbar vou ter que usar preservativo? Esses médicos são assim, eles não explicam nada direito, mas a última coisa que eu estou pensando nesses tempos malucos é em fazer sexo. De qualquer maneira é melhor tomar cuidado, parece que os jacarés preferem os mais velhos.

Quando a gente anda pelas ruas não é só com os jacarés que a gente tem que se preocupar, as calçadas estão cheias de mortos-vivos fuçando lixos, rondando supermercados ou perambulando à toa como zumbis. Se você estiver com cachorro eles não se aproximam, sabem que você está levando o animal para fazer as necessidades dele e mais nada. Mas se você está sozinho é perigoso, sempre que saio sozinho sem cachorro eu levo comigo pelo menos umas três notas de dez reais para afastar os mortos-vivos quando eles se aproximam. Uma nota de dez reais já é suficiente para acalmá-los, mas é sempre bom ter outras de reserva para o caso de nova abordagem. Agora, se você estiver carregando sacolas de comida eles ficam descontrolados, às vezes deixar uma sacola com eles os acalma, mas nem sempre é o suficiente. Todo cuidado é pouco.

A portaria do edifício do consultório médico estava fechada e tinha um vigia na frente que queria saber o que é que eu tinha ido fazer lá. Eu disse que ia no consultório do meu médico pegar uma receita e ele me liberou a entrada. Lá dentro tudo vazio, subi sozinho no elevador até o décimo andar e tive que apertar o botão com uma chave que eu tinha no bolso, sei lá se tem jacaré escondido no botão. Lá em cima todas as salas estavam fechadas e eu continuava sozinho, era o único no corredor. Reconheci logo o consultório, era a única sala que tinha uma luzinha no pequeno vão da soleira da porta. Do lado oposto do corredor havia uma janela, dava para ver um recorte da praia. Vazia, o céu infinitamente azul.

Na volta cruzei com o homem sem cabeça com a sua bengalinha branca que me estendeu a mão aberta sinalizando um pedido. Eu estendi a última nota de dez reais que ainda tinha e lhe entreguei. Mais uma vez ele inclinou o cotoco sem cabeça em minha direção como forma de agradecimento. Ele não me assusta, longe disso, é discreto e muito bem educado. Não deve ser fácil viver sem cabeça.

Chegando em casa a televisão estava ligada e tinha quatro rapazes assistindo, pensei a princípio que fossem os meus sobrinhos, mas logo vi que não eram. Eu estava apertado, louco para urinar, corri para o banheiro, graças a Deus não estava ocupado. Depois que eu voltei os rapazes já tinham ido embora, mas deixaram a televisão ligada e quem estava falando era o Ministro da Economia. Ele dizia que a gente devia agradecer à natureza pelo aparecimento desses jacarés, porque como eles preferem comer os idosos, eles estavam resolvendo o déficit da previdência, que os jacarés são uma solução e não um problema, que todo mundo devia sair de casa normalmente para ir à praia, que os cinemas podiam ser reabertos e os restaurantes também, que as pessoas não precisavam mais ficar presas em casa, que podiam pegar o metrô lotado, porque com o fim dos idosos as contas públicas iam ficar equilibradas e grande parte dos mortos-vivos também iria desaparecer, reduzindo a pobreza e deixando as nossas cidades mais seguras. Na hora eu pensei: que bom, finalmente alguém com pensamento positivo. Mas depois pensei com mais calma, eu já tenho uma certa idade e não sou corajoso como o Presidente, é melhor continuar em casa, mesmo porque se tiver mais gente nas ruas o que pode acontecer é que mais jacarés vão sair dos bueiros e os cientistas não sabem nada sobre esses jacarés, essa é que é a verdade, e de repente eles podem começar a querer comer também os mais jovens e aí não vai sobrar ninguém pra contar a história, melhor deixar quieto.

A Anne Frank também não podia sair de casa porque lá fora tinha uma peste que matou mais de seis milhões de pessoas, quantidade muito maior de gente do que a que os jacarés estão comendo agora. Às vezes eu tenho medo que essas pestes que aconteceram no passado voltem a acontecer de novo, os tempos ficaram muito malucos. Eu tinha o diário dela aqui na estante, será que o morto pegou quando fui ao médico?

O morto tem andado muito quieto, aliás está tudo muito quieto, quieto demais. Ninguém tem usado o meu banheiro, o Presidente nunca mais apareceu pra tomar café, a minha sala está vazia, não tem ninguém. Estou começando a ficar preocupado, será que o jacaré comeu todo mundo?

Esse silêncio… eu estou estranhando. Onde será que o cachorro se meteu? E o morto? Não ronca mais?

O telefone toca (finalmente algum barulho). Para de tocar quando me aproximo. Será que vão ligar de novo? Nada. O silêncio começa a me doer nos tímpanos. Cadê o meu cachorro? Procuro pela casa e não o encontro. Meu Deus! A porta do quarto está aberta. O morto! Cadê o morto!? E o meu cachorro!? Cadê meu cachorro? Desgraçado!, o morto foi embora e levou meu cachorro. Eles foram embora e me deixaram sozinho.

E agora, meu Deus, o que vai ser de mim?

Pedro Tebyriçá

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1955. Participou da antologia de contos Sábado na estação (Apicuri, 2012), organizada por Luiz Ruffato, e lançou em 2019 Contos (nem tanto) Contidos (7Letras).

Rascunho