A Casa das Rosas

Trecho do romance de Andréa Zamorano
Ilustração: Igor Oliver
30/07/2017

Durante aquela fase, Koi esteve sempre ao meu lado, sem nunca mais falar. Os polícias chegaram logo de manhã, alertados por Cesária que, ao dar pela minha ausência, foi até à biblioteca informar Virgílio e se deparou com o corpo jazente do deputado. O cheiro metálico do sangue misturado ao vómito esguichado nas prateleiras, na carpete, na secretária e nos papéis, imprimiam ao cenário uma atmosfera ainda mais irrespirável do que a visão do corpo abandonado no chão.

“O deputado Virgílio de Sá Vasconcelos apresentava um quadro clínico delicado quando foi transportado de urgência para o Hospital Santa Catarina, vítima de múltiplos golpes na zona do rosto, pescoço, tórax e braços, aparentemente perpetradas por uma adaga abre-cartas.”

Dois polícias interrogavam Cesária, e outros tantos vasculhavam a casa à minha procura. Pobre Cesária, não merecia despertar daquela maneira. Não demorou muito para que encontrassem os livros no caixote do lixo e chegassem a uma conclusão. Tendo sido instaurado inquérito pelo Ministério, devido ao notório “interesse público” que o caso suscita. A notícia do atentado apareceu em todo o lado — jornais, televisão, rádio. No meio daquele reboliço político, o caso só veio atirar mais lenha para a enorme fogueira que consumia o sistema político em agonia.

A polícia acreditou que os subversores estabeleceriam contacto nas horas seguintes, na tentativa de pressionar a orientação de voto da Emenda Constitucional — que pretendia reinstaurar as eleições diretas para presidente da República, vedadas à população desde o golpe militar de 64.

Esperaram o contacto dos subversores que me haviam sequestrado, com as exigências, até ao fim da votação. Não chegou a acontecer. A Emenda, que necessitava de votos favoráveis de dois terços dos deputados para prosseguir para o Senado, não seria aprovada na Câmara dos Deputados; nunca ficou claro se o incidente teve ou não alguma repercussão no resultado da votação.

A Nação Frustrada. Os jornais pediam que o país se vestisse de luto, não por mim, supostamente morta. Apesar do meu caso, noticiado em letras garrafais dois dias antes do resultado funesto, o processo de redemocratização não parou. A polícia passou para a busca do meu corpo pela cidade, considerando que, àquela hora, e sem sinais concretos em contrário, estaria indubitavelmente morta pelos extremistas, em retaliação pelo resultado da votação.

Por uns dias, não foi o meu incidente que ocupou as primeiras páginas dos jornais, mas sim o sentimento de amargura e tristeza. As pessoas arrastavam-se pelas ruas, algumas perambulavam como eu, outras choravam, outras ainda limitavam-se a mostrar alguma indignação. Só uma verdade nos era comum: não podíamos parar. Não haverá tempo para contemplações. Estavam todos prontos para tornar a “pátria livre”. Não era o radicalismo que se buscava, era a paz. “Continuemos com a mesma intransigência mas com a mesma esperança”. Estávamos apaixonados. O excesso é o alimento da paixão.

Outras manifestações vieram.
As fotos que publicaram de mim em nada tinham a ver com a pessoa que eu carregava à altura. No papel, era bem constituída, bem vestida, de cabelos compridos e penteados, apesar do ar apático. Na rua, eu era escanzelada, suja, de cabelos curtos, cortados com um caco de ladrilho — encontrado nos despojos da manutenção do interior do monumento onde vivíamos — e levava sempre o sagui comigo.

Foi destacado para o comando da investigação o Delegado Dias, um homem alto, magro, de conduta inabalável, que fumava pelo menos dois maços de Continental por dia. E que viria a divulgar uma nova tese. Saber que fumava deu-me algum conforto; não seria de todo desprovido de sensibilidade.

Ia acompanhando a minha vida nas placas laterais das bancas de jornal, como se de outra vida se tratasse. Também essa era a sensação que tinha de mim própria — dissociação. Aquele “eu” lido, não era eu, mas quem lia também não. Afinal onde estava eu? Quem se lembraria do meu verdadeiro eu? Eu própria já não sabia bem ao certo se me quereria lembrar. Talvez Cesária ou Seu Raimundo? Esses dois, apesar de tudo, conheciam-me por completo, se é que isso é possível.

Andréa Zamorano

Nasceu no Rio de Janeiro e vive há quase 30 anos em Portugal. A Casa da Rosas, seu romance de estreia, foi publicado naquele país em 2015 e ganhou o Prémio Livro do Ano da revista TimeOut Lisboa. O romance será publicado em breve no Brasil pela Tinta Negra Editorial. Além de escritora, a autora é dona do restaurante Café do Rio, em Lisboa.

Rascunho