Vozes precárias

Entrevista com Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, autor de "as visitas que hoje estamos"
Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira por Osvalter
01/05/2013

Um livro de mais de quatrocentas páginas, de título curioso e autor desconhecido chamou atenção da imprensa recentemente. as visitas que hoje estamos (Iluminuras), de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, transita pelas capitais e pelo interior do Brasil, buscando recriar as “disparidades e conformidades” do país. Ainda que não faça reflexões diretas sobre política, a sociedade brasileira e as “grandes questões humanas”, tudo isso é evocado nas entrelinhas de cotidianos comezinhos. Para dar conta deste projeto ambicioso, que durante a escrita se viu ameaçado por certa modéstia do autor, a forma foi imprescindível: Ferreira usou de poemas, aforismos, peça teatral, fotografias e dezenas de textos de variados tamanhos, não necessariamente relacionados entre si. E de uma incrível “vozearia”, como sugeriu o crítico Luiz Costa Lima: “inúmeros personagens tomam a palavra, num ‘ruído geral’”. O conjunto final apresenta uma multiplicidade de personagens e situações sem ironia ou coitadismo, mas plenas de humor: são dramas familiares, conjugais, existenciais, sociais, etc. Entre o desespero e a fé, a esperança e o conformismo, esses personagens buscam permanecer de pé: “O negócio do mundo é derrubar com o rodopio da vida aqueles que andam soltos… E a gente vai se virando com ele, fazendo força para girar pro outro lado, torcendo pra tontura passar…”, considera um dos personagens.

Nascido em Mococa (SP), Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira já morou na capital paulista, onde se formou em Letras pela USP. Em 1994, mudou-se para Aceburgo, no interior de Minas Gerais, onde vive atualmente. Seu primeiro livro, peixe e míngua (Nankin), de poesia, foi publicado em 2003. Já as visitas que hoje estamos levou dez anos para ser escrito. Na entrevista abaixo, concedida via e-mail, Ferreira fala sobre a conversa corriqueira que deu origem a este projeto, seu processo de escrita, sua recepção crítica, o momento atual da literatura brasileira e aposta na melhoria das condições dos professores para formar leitores.

• A dicção de cunho rural-interiorano é predominante no livro. Apesar de morar numa cidade pequena atualmente, como foi verter a escuta, o convívio com essa dicção, em escrita?
Tenho dito, em entrevistas recentes, que o livro articula duas dicções. A rural-interiorana e a urbano-citadina, com o perdão da redundância. Tive a idéia de escrevê-lo depois de um almoço com uma cunhada, num hotel fazenda. Ela reclamou dos filhos, dizendo que iam tomando seu espaço na casa. Ela estava brava. Brinquei, afirmando que aquilo era a vida. Envelhecer seria perder lentamente o espaço vital. Ela seria arrancada da sala, da cozinha. Ficaria com o quarto. Depois, nem isso, restando-lhe a gaveta direita da cômoda, onde guardaria umas coisinhas e esconderia a chave no bolso da camisola. Ela ficou assustada, em vez de rir… Em casa, percebi que o episódio renderia um livro. Fiquei um bom tempo procurando seu lugar numa forma literária que pudesse dar conta da história de vida dessa velhinha, aprisionada no próprio lar e, o que seria muito pior, em si mesma. Sempre tive para mim que a forma artística deve ecoar as questões do conteúdo que, por assim dizer, conforma. Ora, passei então a palavra à velhota, configurando assim o que seria o teor da obra. Gostei do que ouvi. Fui percebendo, no entanto, que uma única voz jamais poderia recriar, em todos os seus tons, a cor local que comecei a matizar. Passei a ouvir outras pessoas, cujas pinceladas pareciam às vezes borrar a tela anterior, ao mesmo tempo em que pintavam novos quadros, em telas que estariam em paredes opostas, até. Ou em outros cômodos da obra em construção. Ou ainda em outra casa caindo aos pedaços, na rua em frente, recostadas numa parede sem reboco, antiga. O estalo foi imediato. Isso é um romance… Fui por esse caminho. A multiplicidade de vozes deveria se amparar e desabar numa diversidade de gêneros, também, compondo e decompondo a realidade, os anseios das personagens e, por extensão, da sociedade brasileira. Então empaquei. Pensei comigo: caramba, isso vai dar merda. Parece que estou sofrendo de uma ambição alencariana malformada na pretensão de realizar um painel brasileiro condensado numa única obra… Li em algum lugar que o problema de nossa formação foi superado. Não concordo. Há conceitos que existem apenas na perpetuidade de sua reposição. É o caso. Nossos dois grandes clássicos, por exemplo, balizam um movimento fundamental para o entendimento do que seria, e é, o país. Machado de Assis (d)escreve um Brasil urbano e fala dele. Guimarães Rosa fala de um país rural e o (d)escreve. Meu objetivo foi tentar perceber o entroncamento problemático desses dois mundos que são, ao mesmo tempo, um só. Tentei me equilibrar no risco fronteiriço de duas realidades que são uma só. Por isso digo que a dicção da obra é rural-interiorana, como vocês bem observaram, mas é, ao mesmo tempo, urbano-citadina. Essa conjunção disjuntiva se espraia por toda a obra e nela se concentra. Daí a multiplicidade de vozes e de gêneros literários.

• Sem a sua vivência no interior e em uma grande cidade seria possível ter escrito as visitas que hoje estamos?
 Penso que minha história de vida, claro, contribuiu de modo decisivo para a escrita. Aliás, a mediação inescapável entre o mundo individual e a realidade circundante vale para todas as manifestações artísticas, não acham? Ao transitar pelo mundo caipira e pelo mundo da capital paulista, pude perceber as disparidades e conformidades de um Brasil que, bem ou mal, busquei recriar.

• Suas várias histórias, pontuadas principalmente por vírgulas, sem ponto final, marcadas pela oralidade, são lidas com extrema fluidez e parecem ter sido escritas “em uma sentada”, num jorro. No entanto, o livro foi escrito ao longo de dez anos. Como foi seu processo de trabalho?
Fico muito envaidecido com a pergunta. Olha, conseguir a clareza e a simplicidade da fala exige um trabalho monstruoso, pelo menos para mim. Escrevo pelas manhãs, depois do café. Não mais do que uma página. Começo lendo as últimas três ou quatro folhas, recortando, remodelando. Só então retomo a escrita. E, de tempos em tempos, vou ao início da obra e releio tudo, porque preciso estar esquecido do que fiz para ter o afastamento crítico necessário. Então altero muita coisa novamente. Muitos podem imaginar que tal regime seja desgastante. Não, ao contrário. Tenho muito prazer ao escrever, ao reescrever. Termino a manhã lendo. Deixo as tardes para correr atrás do suado pão ázimo, cada vez mais ázimo e diminuto. Palestras, aulas particulares, por aí. A maioria dos fragmentos d’as visitas é um recorte da fala de uma das centenas de personagens que passam pelas páginas. Alguns trechos se ligam a outros, às vezes de maneira explícita, estabelecendo um diálogo inusitado, porque são personagens de recortes distintos. Um dos “sofismas diários” que aparecem no livro, escritos por um suicida, afirma que “diálogos são monólogos que se encaixam a marteladas”. Creio que muito do trabalho do escritor seja este. Dar pancadas que, se destroem a pedra, podem moldar também a fisionomia dura do mundo. Ou, se alguém preferir, fisionomia maleável, mas às cacetadas, tenham certeza disso. Os parnasianos que me perdoem… Claro que por vezes o artista arrebenta os próprios dedos. E isso não é outra história, creiam, mas a mesma. O sangue do autor faz parte da obra. E suja os dedos do leitor. Numa outra formulação, se o escritor é sempre uma de suas personagens, o leitor será, por sua vez, perpétuo co-autor daquilo que lê. Por vezes, também, a ligação entre as falas é velada, discurso ditado pelo acaso das coincidências, como acontece na vida, aliás. Há ainda aqueles trechos que aparentemente não se ligam a nada, o que é a confissão muda dos limites da arte, do indivíduo, incapaz de estabelecer o nexo histórico-social entre as realidades vivenciadas. Não apenas em relação às personagens, o que seria de uma presunção descabida, mas principalmente em relação ao autor, no caso eu mesmo… O artista habita invariavelmente as fronteiras movediças que estabelecem o espaço entre alienação e consciência, civilização e barbárie, para usar de duas dicotomias do senso comum.

• Hoje se publica com muita pressa?
Não saberia dizer se hoje se publica com pressa. Há que se notar a facilidade dos novos meios, da Internet. Um poema admirável de Bandeira procurou entender o modernismo poético como um exercício que tiraria a poesia (gênero nascido da necessidade de se fixar no tempo os aspectos essenciais de nossa cultura) de uma simples notícia de jornal. A história toda é conhecida, aparece na correspondência com Mário de Andrade. Pois bem. Como retirar, então, poesia de um texto cuja ambição de permanência não ultrapassava 24 horas, no caso dos diários? A resposta de Bandeira foi exatamente seu Poema tirado de uma notícia de jornal, publicado num jornal… Agora vejam a situação de hoje. Os sites se gabam de uma infindável atualização minuto a minuto. Ao mesmo tempo, todos morremos de medo do que postamos nesse sistema, porque determinadas informações, caso incorporadas à Nuvem, estão condenadas a uma eternidade supostamente homérica. Não existe mudança técnica que não seja uma resposta ideológica a seu tempo. A ambigüidade dessa afirmação é proposital. Se se publica à velocidade da luz, não é defeito do interruptor. O homem é que mete o dedo nele. Quero dizer que a busca pela fama, pelo sucesso, tudo isso põe pressa em todos, é claro. E é obscuro, ininteligível. Eles respondem, mesmo sem saber, aos imperativos de sua época. Bem, ingenuamente eu disse “eles”. Não estou isento disso tudo, por certo. Não sou bobo. Mas sou, também. Será que devo publicar um pouco mais rapidamente?

• Qual a sua relação com as histórias e personagens do livro? Ao dar voz a personagens por vezes tão distantes do senhor, ou mesmo diferentes entre si, fugir da caricatura, do estereótipo e de generalizações foi uma preocupação ou é inevitável?
A caricatura, o estereótipo e a generalização matariam minha obra. E, de cambulhada, seu autor, o que menos me convém, diga-se de passagem. Tentei fugir disso, desses desvios que não se limitam às personagens, quero deixar isso bem claro. Um escritor pode errar o local que recria, o clima, a luz, a direção dos fatos, tudo contribuindo para a terrível sensação de arremedo que alguns livros causam nos leitores. Livros, aliás, que podem estar muito bem escritos, pelo menos do ponto de vista lingüístico. Mas você sai da leitura com a certeza de que manuseou algumas folhas de papel, e só. Tudo bem, o doutor Frankenstein queria criar vida, e conseguiu… Não sei se realizei as personagens na inteireza humana de cada uma delas. Tentar, tentei. Ouvi, no entanto, alguns depoimentos que me comoveram, confesso. Fiquei muito contente com uma amiga que me disse ter ficado surpresa com o mergulho na alma de tanta gente diferente, sensação que não a abandonou, quando lia meu livro. Ela observou que não me via ali, mas enxergava outras tantas pessoas. Retruquei, dizendo que sua opinião era suspeita. Ela concordou, reiterando que tal suspeição valorizava ainda mais o meu desaparecimento na personalidade das personagens. É possível ambicionar um elogio maior? Desaparecido por completo das páginas que escrevi… Claro que é uma ilusão, mas, nesse caso, para completar a metáfora que ensejei com a obra de Mary Shelley, nenhuma dessas criaturas inventadas poderia matar o autor, fato bastante desejável para qualquer artista, concordam? Ou será o contrário? Bendito o artista morto por sua criatura? É evidente que um livro é apenas um livro, sei disso. A vida deve ser, e é, maior do que qualquer arte. Entretanto, esse é justamente o motivo pelo qual a grande obra permanece. Penso agora em todos os clássicos. Transbordantes de vida, invadem os tempos, revelando indefinidamente, para o mesmo sujeito, inclusive, cada vez que retorna a determinada obra, que sua própria vida está ali, inteira, ao lado das vidas de um sem número de pessoas que é capaz de reconhecer. Tal mecanismo, para que a obra subsista, repõe-se para as gerações seguintes, transcendendo os limites da individualidade. Não quero ditar rumos, longe disso. Mas se um artista não tem para si que atingiu esse ponto, melhor ficar quieto. Vá viver a vida, papear, tomar cerveja no botequim da esquina. E ler os clássicos… Se se contenta com papéis, por gosto de ver seu nome na encadernação, paciência. Mas que não dê a desculpa de ter buscado o vazio por necessidade do mundo pós-moderno, ou qualquer bobagem desse tipo. Isso é muito chato.

• O que determinou a seleção e o tamanho de cada história, resultando em um livro de mais de quatrocentas páginas? Como chegou a uma unidade, já que não há enredo?
Cumpre lembrar, antes, que muito de minhas reflexões se devem às idéias do crítico literário José Antonio Pasta, de quem se espera, o quanto antes, a publicação de um livro que aborde o tema que desenvolvo a seguir com a profundidade que lhe é peculiar. Pois bem. O livro tem enredo. Tanto que é possível apontar vários fios condutores que unem personagens e situações. A profusão de liames não autorizaria o reconhecimento de um enredo especial, portanto, moldado na multiplicidade de vozes? Entretanto, é preciso reconhecer, o livro também não tem enredo, como vocês apontaram, porque há de fato numerosos fragmentos que se resguardam de estabelecer contato, pelo menos da maneira tradicional. Como entender essa aparente contradição? Ou, melhor dizendo, essa contradição aparente? Ora, um país que se forma indefinidamente na confluência de disparidades, como no caso das relações entre o campo e a cidade, o citadino e o caipira, conforme se disse, só pode ser retratado na singularidade do movimento contínuo daquilo que é e, ao mesmo tempo, não é. Por isso a opção pelos fragmentos conectados em sua quebra, e, também, quebrados em sua conexão. Por isso a multiplicidade de vozes, de gêneros literários. Poder-se-ia dizer que as visitas que hoje estamos são e não são romance. O tamanho variado de cada fragmento, que deveria ter, necessariamente, autonomia e dependência em relação aos outros fragmentos, obedeceu ao mesmo princípio. Personagens que falam demais; personagens que se arrependem de falar e se calam; personagens que falam pouco; e, até mesmo, personagens que não falam. O livro são vários livros, não sei se me expresso bem. Digo isso porque um amigo espirituoso de São Paulo fez questão de filosofar barato nas minhas fuças, afirmando que um livro que se deseja vários livros está, a priori, impossibilitado de ser livro, o que o tornaria, além de tudo, livro algum… Mandei-o à merda, claro. Ele riu. Acho que Nietzsche escreveu que os bons livros separam os leitores de verdade logo nas primeiras páginas. Joguei isso na cara dele, e o desgraçado riu mais. Completei, então, que realmente não escrevera um livro, mas um mata-burro instalado na capital paulista, em Higienópolis… E continuei: sei de gente que entrou na minha obra firmemente com as quatro patas, enfiou os cascos no vão das entrelinhas e morreu ali, zurrando comentários críticos que eram, muito mais, os estertores da própria “inópia mental”, para citar adequada expressão machadiana… Ele gostou da frase, acreditam? Sugeriu que a encaixasse no próximo livro. Creio que vá atendê-lo, por que não? Acabei até adotando a história de um livro que são vários livros e, por isso mesmo, livro algum.

Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, autor de “as visitas que hoje estamos”

• Em uma entrevista, o senhor afirmou, a respeito do título do livro: “’Estar visita’ evoca uma situação desconfortável, de não se identificar com lugar algum”. Essa é a característica do brasileiro?
Muitos pedem que eu explique o título. O curioso é que apenas troquei o verbo usual. “Estar visita”, além do que se disse, aponta para a conscientização amarga de uma situação provisória, condição de precariedade indefinidamente estendida, por assim dizer. A expressão, portanto, resume em sua forma deslocada aquele entroncamento problemático ao qual me referi há pouco, na primeira questão. O título alude a um desconforto particular, inserido na vida de cada uma das personagens, e, ao mesmo tempo, abarca uma situação histórica, de povo, de nacionalidade, com a pretensão de reconstituir muitas das afinidades e incongruências sociais do país. Até espalho, por chiste, que a maior culpada pelo título esquisito foi a velhinha do primeiro fragmento, que fala a respeito de si: “[…] velha se desfazendo, mas a cabeça regulada, querendo impor outra melhor ordem na memória, requentando o café para as visitas que hoje somos e estamos, […]”. Digo que devia isso a ela, já que foi dela que surgiu a idéia do livro. 

• Ainda sobre o título, um dos personagens-narradores diz: “(…) quando entregou o carrinho quase chorou, eu vi, era 74, mas a lataria lustrosa, brilhando os reflexos, diferentemente do embaçado dos dias que íamos tocando ou sendo tocados, pra não mentir”. Os relatos que carregam, mesmo que com humor, as desgraças das pessoas, parecem impregnados desse sentido de “ser tocado” adiante (ou para trás) pela vida. Como fazer algo mais do que evitar ser derrubado pela vida?
Poxa vida, agora vocês me pegaram. Como não ser derrubado pela vida? Olha, a vida está na cabeça de cada um, e, também, ao nosso redor, fora de nós mesmos — ainda que nesta vida, por motivos óbvios, estejamos nela enfiados até o pescoço… Fernando Pessoa, no famoso “Ela canta, pobre ceifeira”, inveja a “alegre inconsciência” de uma trabalhadora desgraçada que, não obstante, canta enquanto ceifa. O que ela teria, que ele não tem? Ou, melhor dizendo, o que será isso que ela não tem, e ele parece ter (ou pensa ter), que o faz tão infeliz? Perceberam a diferença das colocações? Vale citar alguns versos, que serão a melhor resposta para o dilema:

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente ‘stá pensando.
[…]
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso!

Ora, há nesses versos o reconhecimento de uma impossibilidade insuperável. É uma questão moderna. O sentimento também pensa… Antes não era assim. A cabeça seria apenas racional, e pronto. O coração sentiria, e pronto. Isso mudou, e ainda bem que mudou. A partir do século 20, principalmente, percebeu-se que a coalescência, a mistura, para usar de um termo popular, é a resposta para as nossas questões existenciais, tanto no sentido psicológico quanto no histórico-social. Claro que a Arte, em todas as suas manifestações, teve de se colocar diante dessa nova visão de mundo. Assim como a política, em todos os seus sentidos. Não é à toa, portanto, que essa questão foi, e continua sendo, motivo de lutas sociais e movimentos artísticos. Vejam o quiproquó absurdo e, não há como negar, revelador, na Comissão de Direitos Humanos. A arte popular, só modernamente reconhecida em sua plenitude, ou seja, por todas as classes sociais, exemplifica como nunca o problema dessa nova resposta e, por que não dizer, dessa nova pergunta, quando repõe as limitações e a precariedade de sua condição com a beleza daqueles que, mesmo diante das dificuldades, podem e devem construir o caminho da própria felicidade. Mas, infelizmente, nem todos têm essa autonomia. Autonomia para entender-se no mundo, para entender o mundo e, o que é fundamental, ter a força mínima de esticar a cabeça para fora das misérias. Então é preciso agir na construção de uma sociedade verdadeiramente justa. Mistura é um bom termo porque assimila todas as diferenças num resultado que sopesa de modo respeitoso as particularidades… Vejam bem, não disse “mais justa” de propósito, que isso é eufemismo barato para os acomodados dormirem em paz consigo mesmos. Na maioria das vezes o sono pesado dessas pessoas custa apenas uma esmolinha, seja ela da natureza que for. E se há, por fim, os que cada vez mais acreditam no sistema perverso das diferenças justificadas pela falácia da meritocracia, por exemplo, é porque as fichas da alienação se misturam às da desfaçatez nos jogos de cartas marcadas.

• Na peça Os olhos de jussara, seu autor, um escritor que se suicidou, anota: “Atenção: reescrever a fala de Cora. Retirar dela a literatice…”. O senhor também procurou fugir da “literatice”?
Pois é. Nem precisaria resgatar o que disse até aqui. Um livro é só um livro, mas deve ser transbordante de vida, foi isso? Então muitas vezes me peguei autor, escritor, criador, com aquele prazer besta e pretensioso de ter escrito muito bem um determinado trecho, fragmento vivo do mundo. Ora, ora ora… “Vivo” uma pinóia, como se dizia antigamente. Um escritor precisa saber dar puxão nas próprias orelhas. Então deixei de trabalhar como queria um determinado trecho da peça para que, assim, ele permanecesse como lastro intelectual dos limites da escrita, da obra, do indivíduo, de mim mesmo. Mas fui obrigado a avisar o leitor, claro. É preciso não acreditar nas literatices que abundam por aí. Principalmente se forem as minhas… Bem, nesse caso, então, acho que trabalhei como queria, não é? O que anula e, ao mesmo tempo, confirma tudo que acabo de dizer. Viram como o artista lida com impossibilidades insuperáveis?

• O senhor foi chamado de “uma das grandes surpresas da literatura brasileira nos últimos anos”. Considera seu livro ousado? Inovar é uma preocupação sua? Como fugir, nesse caso, da mera estética?
Já disse isto em outras ocasiões, mas não custa repetir. O artista que afirma não gostar de ouvir uma colocação dessas está mentindo. Mas a surpresa, cá entre nós, deixa de ser surpresa no minuto seguinte, como vimos há pouco, quando falei da velocidade dos novos meios, lembram-se? Então isso, na verdade, é desimportante. O tempo dirá se a obra tem o fôlego estético e histórico para continuar dialogando com os leitores. Se não tiver, paciência. Não depende mais do escritor. Foi isso que Mário de Andrade comentou a respeito de seus “versos de circunstância”, não foi? Afinal, todo artista deve se contentar com a sua verdade, o que não é pouco, mesmo que o mundo jogue em sua cara que mentiu descaradamente. Se me permitem, cito outro trecho da obra, legenda de uma fotografia muito parecida com a da capa de meu primeiro livro, peixe e míngua, poemas que publiquei em 2003. O título desse fragmento: “ninguém escreveu isso”. É uma reflexão auto-irônica, esperançosa, crítica, ciente do papel continuamente amarfanhado do escritor…

continuo porque acredito nisso, não depende do indivíduo, nunca dependeu, um livro pode melhorar muito com o tempo, é assim, ó, é possível que um livro seja mais bem escrito mesmo depois de publicado, depende dos rumos do mundo, não, não é maluquice, acontece bastante, vai rindo, vai, pode dizer que é esperança dos desajustados, não é, não, entende?, não, você não entende, pelo menos agora

Não sei dizer se o livro é ousado. E nunca me preocupei em inovar. Tal preocupação costuma se filiar a obras cuja ambição é a de encarnar a mercadoria em seu sentido lato, ou seja, querem fazer dinheiro. Ocupar a lista dos mais vendidos, expressão que tem lá a sua graça irônica. A grande preocupação de todo artista que se imagina fora da esteira cultural (o que pode ser apenas um refinamento perverso do conceito de alienação) talvez seja a de encontrar na forma o espelho de seu conteúdo, já que tal conjunção necessariamente estabelece a obra como um produto, vá lá, que ostenta pelo menos o teor de alguma autonomia crítica. Acho que já disse isso, não? Em todo caso, cumpre acrescentar que essa observação vale tanto para as obras revolucionárias, de todas as épocas, quanto para as reacionárias, que aliás estão pondo as entrelinhas de fora, hoje em dia, sem nenhum pudor…

• Deus e o diabo, religião, superstição, sorte e crenças populares estão muito presentes no livro, colocando os personagens em conflito ou dando a eles esperança. Como caracteriza essa relação?
A questão religiosa é central para a nossa formação. Catolicismo oficial, misticismo, superstições, espiritismo, crenças, religiões africanas, protestantes, o diabo… O brasileiro fica oscilando, no mais das vezes assumindo simultaneamente a postura de várias dessas religiões ao mesmo tempo, segundo os ventos das circunstâncias, para usar expressão aproximada à do Papa que acabou de pendurar as chuteiras Prada. Então a centralidade a que me referi fica se deslocando continuamente. De novo aquele entroncamento problemático, lembram-se? Oxalá o leitor perceba isso na obra. Em verdade, em verdade, para responder do princípio a questão, as personagens vivem conflitos pela religião, para a religião, e, não poderia ser de outro modo, por causa dela. Conflitos, entretanto, firmemente assentados na pedra frágil da esperança numa vida melhor por aqui mesmo… Mistérios da fé?

• Os personagens-narradores se dirigem a um interlocutor que muitas vezes não é identificado. Quem é ele?
Primeiramente é o próprio sujeito, que fala para si. Depois, é alguém ali presente, um conhecido do narrador. Em seguida, eu mesmo, claro, porque sempre fui de meter o bico onde não sou chamado. Depois, o leitor, esse coitado. Mas como ninguém escuta ninguém, acho que no fundo são as paredes, condenadas que foram a ter ouvidos pelos séculos afora.

• A literatura deve “embelezar a feiura da existência”, como acredita uma de suas personagens?
De fato, muita gente pensa assim. Outros, abominam essa visão, afirmando justamente o contrário. Acho que vale reproduzir o trecho ao qual vocês se referem. Está na peça teatral. Cora conversa com a filha, falando do hábito de ler as manchetes nas bancas de jornal, quando tem tempo. Creio que o fragmento contenha, na verdade, os dois movimentos que apontei, de atração e repulsa:

CORA
Então… Os jornais gostam tanto de desgraça! Mas fazem questão de fotos bonitas! Teve uma que não pude esquecer… A mãe com o filho, dentro de um ônibus, chovia… O vidro todinho respingado, as gotas certinhas. Ficou parecendo um quadro, de tão bonito, de tão colorido… Parecia que posavam, parecia uma pintura… Mas eles estavam fugindo da guerra, tinham perdido tudo, tudo, acho que uns parentes mortos, inclusive. A criança sem saber de nada, inocente, pobrezinha… Mas os olhos da mãe carregando o sofrimento da família inteira… Acho que a gente fala assim das nossas desgraças por causa disso, pra embelezar a feiura da existência, não será isso? Uma hora a gente acerta no modo como conta nossas desgraceiras, e o mundo desandado, quem sabe, acerta um ou dois passos… Será? Bom, no fundo, no fundo a gente fica chata, exigindo que os outros vejam a beleza de sabermos contar tão bonito a porcaria das nossas vidas… Então acho melhor ficar quieta…

Como viram, eu não saberia falar a respeito do tema com a propriedade da minha amiga Cora. Aliás, o romance é isso. As personagens, de modo geral, falam muito melhor do que o autor. Ainda bem.

Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira

• O livro, com sua riqueza de histórias, leva a questionar se os escritores contemporâneos não estariam muito focados em si mesmos. A sociedade brasileira é bem representada ou retratada na nossa produção atual?
Disso faço questão. A literatura precisa ter o que dizer. Não que o próprio umbigo não possa revelar profundidades oceânicas. Às vezes revela, e o autor nada de braçadas em si mesmo, arrastando os leitores para as profundezas salgadas de sua subjetividade. Mas, convenhamos, isso é raro. Tão raro que, na maioria dos casos, topamos com defuntos e mais defuntos, afogados em páginas tão inchadas, mas tão inchadas, que não temos fôlego para ir até o fim. E ambos, autor e leitores, mortinhos da silva numa reles poça d’água. O contrário, no entanto, como pode parecer ao desavisado, também não é garantia de boa literatura. Muitos autores correm atrás do pitoresco, do burlesco, da vida venturosa, numa profusão de peripécias que empurram a leitura e derrubam de boca o leitor, que arrebenta muito mais a consciência do que os dentes da frente… É o sonho deles escrever uma interminável perseguição de carros num livro de ação, hoollywoodeanamente adaptável, claro. Nesse caso o defunto é outro, corpo-seco assombrando a meninice perdida dos leitores. Tudo bem, muitos deles se olham no espelho, em plena vida adulta, sorriem e se contentam com o que imaginam ser, pelo resto de suas vidas, seus dentinhos de leite. Inclusive, tem muito banguela fazendo isso… Nossa realidade, para terminar, é bem retratada na literatura atual. Temos grandes escritores preocupados com a situação do país. Preocupação que, se não é explícita, porque a arte engajada, de qualidade, se estabelece em momentos muito específicos na história de um país, é pano de fundo de nossas várias verdades, construídas com maestria por artistas que sabem o que dizer. Claro que há muita porcaria, também. Mas isso tem em qualquer época, em qualquer lugar. E, às vezes, precisamos dela. Passar o tempo, confirmar banalidades; enfim, perceber que não só de pão vive o homem. Quem não gosta de comer uns porcariazitos de saquinho de vez em quando? A compreensão do mundo pede um olhar abrangente, sempre. E as futilidades, afinal, fazem parte da vida. O problema é tomá-las por grandes coisas — e se imaginar vivendo de pipoca pelos anos afora. Aí já é espírito de porquice demais…

• Situações cotidianas, comezinhas, que por vezes chegaram ao senhor através de seu trabalho como comerciante, compõem o livro. Ocorreu ao senhor transformá-las em crônicas?
Gostei da pergunta. Vem em boa hora. Queria muito receber o convite de um jornal que precisasse de um novo cronista, desde que a atividade, por força material, acrescentasse algum fermento àquele pão ázimo referido numa das respostas anteriores, de forma que a massa pudesse crescer um tantico, pelo menos, deixando de ser ázima, é certo, mas enchendo minha boca, que teria mais ócio, portanto, para cuspir umas literaturas com os perdigotos felizes da nova atividade. Faço minha defesa. Que veículo tem um correspondente enfiado no meio do mato? Correspondente em Nova Iorque, em Londres, é chulé. Eles se trombam por aí. Grande porcaria. Mas um correspondente em Arceburgo, MG, pensem bem, pronto para ter de escrever a respeito de absolutamente coisa alguma, seria uma sofisticação acaipirada que, provavelmente, nunca houve na história do nosso jornalismo. E o lugar é privilegiado. Sem ter o que contar, exerceria a liberdade de me meter onde quisesse. Até em Nova Iorque e Londres, se a veneta para lá me conduzisse. 

• Arceburgo, cidade onde atualmente vive, não possui nenhuma livraria e seu acervo pessoal é maior do que o da biblioteca da cidade. Qual o papel que a leitura e a literatura ocupam na sua vida?
A leitura e a literatura ocupam na minha vida um papel central pelas beiradas, como tudo nesse país, aliás. O intelectual brasileiro dá murro em ponta e em cabo de faca, sem saber o que é pior para os dedos. Sempre li bastante. E, curiosamente, sempre me vi escrevendo. Desde moleque, acreditam? Se demorei para publicar, a culpa não foi minha. Quando lemos, abrimos as janelas para gente graúda, que fica nos espiando nas vírgulas do dia-a-dia. Um saco. Ou não? Muitos não ligam para isso, e fazem muito bem. Creio que haja muitos grandes leitores que não escrevem justamente por serem bons leitores. Sinuca de bico calado? Pois é. Ler muito, ser autocrítico ao extremo, mas ter alguma autocomplacência na hora de escrever. Talvez tenha demorado para chegar a isso. Para mim, tal exercício foi e é uma luta sem fim, devo confessar. Mas gosto da briga, das porradas. De dar uns pescoções. Mas é preciso saber apanhar, também. Antes pensava bestamente: pra que ficar gaguejando livros se há tanta gente cantando com a voz bonita e poderosa? Bobagem… Olha, penso hoje que o murmúrio no fundo do quintal tem a mesma importância da ária bem executada por um barítono famoso, das europas, e coisa e tal. Até mesmo um aceno pode ser mais decisivo, quando a voz engasga, e ela sempre engasga por aqui… Um fiapo de voz, saído num momento de lucidez, compõe muito mais a nossa verdade histórica que a mais bela partitura da música universal. Lembram-se do Pestana machadiano?

• Como incentivá-las entre a população?
A maioria das pessoas, mesmo aquelas que lêem pouco, sabe o caminho para que os livros façam, de fato, parte da vida de todos. Família, escola, amigos… Mas vou falar só da escola, ciente, entretanto, de que toco numa parte da questão, apenas. Vocês há pouco falaram das histórias que costumo ouvir, não foi? Pois bem, ouvi certa vez, de uma jovem, uma dúvida curiosa. Ela não sabia se apanhava café ou aceitava algumas aulas oferecidas pela direção de uma escola da cidade. Fiquei sabendo, depois, que ela optou pela “panha” de café, como se diz por aqui. Longe de qualquer preconceito, a situação ilustra muito bem um dos motivos da desvalorização da cultura letrada, para aumentar o alcance do “causo” que contei. Mas não quero ampliar a questão, não. O professor precisa ganhar bem mais. Repito: bem mais. Escuto de vez em quando um ou outro “especialista” dizer que o problema da educação não é salarial. Até o comparam com o de outras profissões, coisas assim. Olha, acho que essa postura tem muito de má-fé, de canalhice interesseira, mesmo. Perguntem aos alunos dos famigerados cursinhos se querem ser professores. Vocês vão cair de costas. Visitem as escolas públicas, também. A maioria está fugindo dessa profissão, infelizmente. Resumindo. Precisamos oferecer ao professor uma carreira muito bem remunerada, segura. Com perspectivas. Precisamos de políticas públicas que assegurem tal condição para que ele reconquiste, num futuro próximo, credibilidade maior do que a do falso parentesco com “tias” que vivam de favor, na sala de mal-estar dos prédios públicos. Isso atrairá os melhores alunos para a profissão. Ah, mas alguns péssimos professores passarão a ganhar bem, então? Paciência. É o preço histórico que devemos pagar. É até barato, pensando bem. Não falo, evidentemente, das elites, dos professores daqueles cursinhos já citados, ou mesmo de professores universitários que, apesar de não ganharem o que merecem, não costumam abandonar as salas de aula para apanhar café. A profissão de professor, em sua abrangência nacional, em todos os níveis, não pode ser opção de quem não teve outra escolha. Profissão de “mulher malcasada”, para usar expressão nefasta e conhecida de um dos nossos detestáveis políticos, cujo nome faço questão de omitir. Enfim, imagino que tal política seja um dos bons modos para termos mais taxistas leitores, engenheiros leitores, balconistas leitores, médicos leitores e, o que é mais importante, até professores leitores…

• Sua biblioteca possui mais de sete mil volumes. O que há nela? Quais as suas preferências?
Muita literatura, crítica literária, filosofia, história, por aí. Gosto muito de dicionários, também. Drummond os adorava, então estou bem acompanhado. O seu Áporo, muitos sabem disso, nasceu do hábito de lê-los. Ele tinha o Caldas Aulete, em cinco tomos, e o poema está todo no verbete, por assim dizer. Vale conferir. Devo dizer, ainda, que o poema não é, por isso, mero exercício poético, como já ouvi falar. A idéia surgiu daquela leitura, mas o universo do poeta está ali, transfigurando o que seria mera organização lexical. O verbete foi incorporado pelo poeta, que soube dar vida ao próprio mundo numa junção genial daquelas diversas acepções. Drummond, né?

• Com a boa recepção de as visitas, há uma expectativa em relação a seu segundo livro, que já está sendo escrito. O que podemos esperar?
Ele está bem adiantado, porque comecei a redigi-lo junto com as visitas. Eusébio Sousa, personagem que escreveu a peça teatral e os “sofismas diários” no livro que acabo de publicar, voltará. Quero que os dois livros, depois, sejam lidos como uma única obra, e, ao mesmo tempo, obras distintas. Cheguei a pensar, antes, em publicá-los num único volume, até. Desisti. Não é da nossa tradição livros com 750, 800 páginas. Enfim… Devagar com o andor, que eu nunca fui santo.

Yasmin Taketani

É jornalista.

Rascunho