Vontade e teimosia

Entrevista com Carlos Eduardo de Magalhães
Carlos Eduardo de Magalhães, autor de “Das coisas definitivas”
01/09/2008

Por Rogério Pereira e Vitor Mann

• Pitanga é uma crítica ao homem contemporâneo, que deseja apenas miragens via consumo?
Difícil definir o que sejam miragens. Um opala turbinado, uma mulher bonita dessas das revistas, um relógio de ouro, a primeira edição de Em busca do tempo perdido, um helicóptero? Essas coisas são físicas, palpáveis, por mais estúpidas que sejam, ou que possam parecer. Miragens talvez sejam aquilo atrás do que todo escritor deve estar, a alma humana.

O cenário de sua narrativa longa insinua uma São Paulo caótica, sem saídas, totalmente congestionada. São Paulo, na sua ficção, é o território da impossibilidade existencial? Por quê?
São Paulo é uma cidade com muitos defeitos. É suja. É violenta. É cara. Tem um trânsito que desafia o humor e o bom senso. Uma cidade que não pára e que engole e cospe sem dó aqueles que não estejam preparados para ela. Mas é uma cidade sem dono. É uma cidade em que se pode ser livre no pensar, no comportar-se, em que se pode ser anônimo. Acho que existir em São Paulo é uma possibilidade real, por vezes real demais. Com toda a dureza inerente à realidade.

O que representa Gilberto Varcellos, o personagem central de Pitanga? A inevitável decadência mesmo para quem tem dinheiro? O pó que saiu da terra e retornará a terra, apesar das festas em Angra dos Reis, granas e todas as mulheres que se deitaram em seu leito?
A inevitável decadência vem depois que se atinge o auge. No caso do pai dele, veio com a idade e a perda das forças. Gilberto vivia entediado no seu auge, um topo sempre estável. Sua decadência chega justamente com a chegada da literatura em sua vida. Uma literatura que talvez já morasse nele, como quando criança e inventava histórias com seus Falcons. É a literatura que o fez mergulhar num mundo interior, um mergulho que lhe tirou as tantas bóias que o faziam viver na superfície. Foi sua perdição. Sim, o pó que saiu da terra volta pra terra. E o que fica no meio? A essência ou a aparência? O livro fala disso.

Inserir uma pitanga em meio ao fluxo, que é narrativa, seria mais um nonsense da sua ficção?
Não. A palavra pitanga, que dá nome ao livro, aparece apenas uma vez e representa o ponto em que Gilberto descobre a literatura. É o ponto exato da virada do personagem. As frases pensadas por ele nasceram de maneira parecida em mim. Estava olhando a pitangueira no jardim de casa e as frases vieram por encanto, no momento em que o livro as pedia.

Por falar nisso, é o nonsense que afina (ou desafina?) a sua prosa inventiva?
Não acredito que o nonsense seja parte essencial de minha escrita, pelo menos não nos meus últimos trabalhos. Existe sim, permeando meus livros, a não-linearidade. Pergunto-me se foi uma opção ou apenas o único jeito que consegui para me expressar. Ainda assim, procuro uma amarração, uma lógica que faça o livro ficar de pé. Escrevo na ordem em que o leitor lê, não faço um quebra-cabeça proposital. O nosso mundo é tão fragmentado, não? Sou apenas conseqüência disto.

Os tiques da classe média foram recriados literariamente em Pitanga?
Não sei dizer. O personagem principal exerce a arrogância típica dos muito ricos e sempre que pode tira um sarro da classe média. Personagens como Gislaine e Douglas, que fazem parte de um Brasil que começa a ter voz, vão chegando, instalando-se, redefinindo-se e definindo uma nova classe média. Bom, também faço parte dela, talvez por isso esteja presente.

• Que tipo de escritor é o personagem central de Pitanga?
Gosto de pensar que, quando ele passa a escrever, quando a farsa deixa de ser farsa e ele é pego na arapuca que armara, a verdade seja sua matéria-prima. Uma verdade que é como São Paulo, como a literatura, não tem dono. Por mais que exista a academia, os jornais, os escritores, o mercado, esse corporativismo que define e afunda nosso país e que atinge também as artes, etc.. Qual verdade? Não sei, não pensei o livro que ele escreveu. Se é bom escritor? Provavelmente não, mas teria seu livro publicado com certeza.

Que importância a literatura pode ter na vida cotidiana das pessoas? Que importância ela tem na sua vida?
Faz alguns anos tive a certeza de que literatura era uma maldição. Não me havia trazido nada de bom, e só trazia dificuldades para as pessoas mais queridas que me cercavam. Falta de grana, projetos que não aconteciam, e um silêncio interno em que me fechava enquanto trabalhava num livro. Fico mesmo imprestável. Dentro de uma narrativa mais longa, você trabalha na fila do banco, no caixa do supermercado, antes de dormir, caminhando. Falam com você e você não escuta. E tem de engolir aqueles que dizem que você não faz nada… Se faz algo de bom, ou de ruim, é outro assunto. Se é melhor lavrar a terra, ou fazer contas num escritório qualquer, também outro assunto. No escrever, o mundo de fora perde um pouco a razão, só que as contas vencem no final do mês e precisam ser pagas. E você deve correr atrás disso. Nos momentos difíceis, uma boa página valia o dia, o humor, fazia o céu ficar mais azul. O começo do Pitanga foi escrito em um ano em que não dormi (2003). E aquilo que era a âncora amarrada em meus pés foi o que me fez respirar. Fui descobrindo que, se era uma maldição, era também uma bênção. Para começar só depende de mim, e basta um teclado como ferramenta (não gosto de escrever à mão). É um troço que vai melhorando com a idade, ao contrário de quase tudo. Não podem me despedir, porque não sou empregado. Não tenho compromisso com ninguém, nem com o leitor. Como ter se ele pode escolher ler Thomas Mann, por exemplo? Então era o mais livre dos trabalhos. Além do que, minha relação é só com o texto, e não preciso fazer média com ninguém. Na vida das pessoas? Ela ajuda a domar a fúria que mora em nós. Nos faz pessoas melhores. Acho que um economista com seus números pode explicar melhor do que eu.

Há poucos anos o mercado editorial brasileiro passa por uma imensa transformação com a chegada de grandes grupos estrangeiros. Além disso, pequenas editoras surgem a todo o momento. Com a Grua Livros, o senhor também entra no maluco jogo chamado mercado editorial. Por que esta opção? O que o motivou a editar os próprios livros?
Foram várias as razões. Minha formação acadêmica é em administração de empresas (FGV-SP), fui dono de livraria por sete anos, passei por algumas editoras como autor e acompanho o mercado faz muito tempo. Aliado a isso, um amigo, Rodrigo Coube, montou uma editora e distribuidora e poderia me ajudar na parte comercial. E o escritor Adauto Leva, que conhece literatura brasileira como poucos, e com quem tenho afinidades literárias, além de uma amizade sólida, topou entrar comigo na empreitada. É, e fiz 40 anos, na época da decisão. Precisava de ação. Vinha de um ano, 2006, em que escrevera bastante, e intensamente – uma espécie de ensaio que me atropelou. Senti que estava numa encruzilhada. Em 2007 partia para um novo projeto literário, um romance cujas primeiras páginas iam sendo escritas, e encararia alguns anos em outro mergulho ainda mais profundo, ou iria para o mundo? Quis vir pro mundo. O romance fica, quem sabe, pra 2010. Ficamos muito na dúvida se deveríamos publicar nossos livros pela Grua, não é essa a finalidade da empresa. Traduzimos já um autor suíço contemporâneo, Hansjörg Schertenleib, um uruguaio já consagrado pela tradição, Ángel Rama. Um americano, ficção, um inglês e um francês, não-ficções, estão em tradução. São livros que passaram por nosso crivo editorial, e esperamos aceitação de mercado. Somos pequenos, não somos alternativos. Por fim, optamos por publicar nossos livros. Não ficaria bem ter de responder a outra editora, ou a um autor, a pergunta “Por que não saem pela Grua?”. Mas ser editor de si mesmo tem um lado bem difícil. Quando você manda um original pra alguém, a bola fica com ele. Se quiser publicar, a responsabilidade é toda dele. Agora é sua.

Que literatura mais o atrai? Quais autores foram ou são essenciais em sua formação como escritor?
Não sou um sujeito de autores, e sim de livros. Se leio algo que gosto muito, procuro outro autor, de outra língua, outra época, que me vacine. Apaixono-me mas não quero casar, tenho vocação para a infidelidade literária, vou atrás de outra paixão que me faça esquecer a primeira; nem sempre é possível. Acho que deve ser devastador ler tudo de um grande autor, corre-se o risco de ficar refém dele, de seu trabalho ficar atrelado ao dele. Além do mais você não vê o caminho. Vê o que ele fez de melhor, não vê suas bobagens, aí pode travar. As leituras influenciam demais o escritor. Escreve-se o que se vive, e também se vive o que se lê. Aliás, talvez o grande segredo da leitura seja este, viver o que se lê. Na minha formação passei por uma série de livros que deixaram marcas importantes, mas não creio ter fugido muito da leitura dos autores da minha idade. Sou capaz de dizer uma lista de 50 livros que li e que poderiam me definir como um erudito, e outra de outros 50 que não li que poderiam me definir como um ignorante. Sinto-me mais ignorante que erudito.

De que maneira a literatura entrou em sua vida? Como se deu a sua formação como leitor?
Cresci em uma casa cheia de livros. Meus pais liam muito. Via-os ler, tentava em vão acompanhá-los; enquanto eu virava uma página eles viram várias. Li muito pouco infanto-juvenis – acho que por isso não me aventurei a escrevê-los. Lia Julio Verne e passei pelo Conde de Monte Cristo ainda no primário. Eu precisava lê-lo porque era grande; deve ser parecido com o impulso que faz as crianças atravessarem os Harry Potter. No ginásio, tinha as leituras obrigatórias. Lemos bons livros, de autores como Mark Twain (Huckleberry Finn) e Kafka (Metamorfose). Também José de Alencar, Erico Verissimo e Machado Assis; Machado foi prematuro. De presente de Natal ganhava do meu pai livros de poetas como Castro Alves e Gregório de Matos – eu gostava de fazer poesias -, que haviam sido importantes na sua formação. Ler era uma coisa lúdica, não tão bom quanto jogar bola, ou assistir à Sessão da Tarde escondido. Mais que isso, ler era viver as tramas. Até o antigo testamento eu devorei. Em casa, a partir da sétima ou oitava, comecei a ler outros tipos de livro, como Os chefes, do Vargas Llosa, e O sol é para todos, da Harper Lee. Livros que meus pais liam e pelos quais comecei a me interessar. Quinze anos, os clássicos e mudança de escola. No colégio novo nos davam para ler Sófocles, Eugene O’Neil, além de Jorge Amado, J. J. Veiga, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Mário de Andrade, etc. E em casa, nas férias, quando não estava ocupado com coisas mais importantes, conhecia Dostoievski, Hemingway, Camus, García Márquez, e tantos mais, que se descortinavam para mim e me abriam um mundo espetacular. Na faculdade minhas leituras se firmaram, eu lia muito. Acho mesmo que fazia uma coleção de leituras, um exagero. Acontecia de viajar sozinho em fim de semana para ler. Com 20 anos. Que desperdício… Hoje em dia se um jovem faz isso os pais tacam um tarja preta. Se eu havia decidido ser escritor no ginásio ainda, minha vida me levava para outro lado, e não escrevia nada. Mesmo sem saber, estava represando. Fundamental represar.

Independentemente do grande desequilíbrio social brasileiro, quais os melhores caminhos para se formar um leitor?
Professores preparados e uma rede de bibliotecas que tenham livros bons e que funcionem. Forem bonitas, as bibliotecas, melhor.

Como é a sua rotina como escritor? De que maneira nasce a sua ficção?
Consigo escrever apenas uma coisa de cada vez. Escrevo em casa, quando a casa está vazia. Gosto das tardes para trabalhar. Sou bem disciplinado. Sento e escrevo, todos os dias da semana e, por vezes, nos fins de semana. O que acontece é que está cada vez mais difícil começar um livro. Se significa muita coisa boa, escrever é mesmo um prazer, significa também silêncios, a cabeça focada demais. Como atravessar um rio largo pela terceira, quarta vez. Você já sabe o que te espera. Escrever é sobretudo um ato de vontade, e de teimosia. Quando começo um livro tenho sua estrutura pré-montada na cabeça. Um objetivo. Definição de narrador. Tamanho. História. Uma idéia sobre a qual o texto deve assentar, idéia esta que deve sumir, perder-se. A idéia é que me move a escrever – e a idéia é sempre sobre o ser humano, uma tentativa de decifrá-lo -, como se algo precisasse ser dito e esperasse a hora certa. Não fiquei contente com todos os meus livros depois de prontos, embora todos tenham seguido os princípios por mim determinados.

• E a sua rotina como leitor?
Não leio enquanto escrevo. Mas nas pausas. Às vezes interrompo o trabalho por umas duas semanas para ler. Tenho uma fila de leituras atrasadas, que vira e mexe é furada por algum volume que chega e se impõe. Não tenho livro de cabeceira. Gosto de pegar um livro quando sei ter tempo de lê-lo inteiro, com poucas interrupções. Revezo entre clássicos e literatura contemporânea. Agora tenho lido quase exclusivamente para a Grua.

Que conselhos o senhor daria àqueles que desejam dedicar-se à literatura como escritor?
Procure por sua própria voz. Olhe para dentro. Leia livros que a tradição recomenda, em regra, são muito bons. Porém não deixe que eles te dominem, te paralisem, algo que acontece com freqüência com os estudantes de Letras. Aliás, não faça Letras. Procure sua própria lista de leituras, não deixe que uma só pessoa paute o que vai ler. Grandes textos podem estar onde menos você imagina; numa conversa na mesa do lado, num bar, numa entrevista para prefeito, numa citação de um personagem de um conto sofrível. Não perca tempo lendo textos engraçadinhos, divertem mas não acrescentam. Se quiser lê-los, o faça para se distrair, é muito bom se distrair, como quando se assiste a futebol na TV. Não perca tempo lendo textos que querem ensinar ou catequetizar. Se quiser ler, o faça para brigar com eles. Evite levar pareceres muito a sério, porém preste atenção a eles, às vezes existe uma chave para aquela porta que você não conseguiu abrir – lembre-se que existem críticos e pareceristas honestos e competentes. Não escreva para o mercado, porque o mercado muda. Se o teu trabalho for bom, ele virá até você, ainda que tarde. E se for tarde demais, não era mesmo pra você. Não que não deva ir à luta, deve, tem obrigação, porque nada acontece se você não batalhar; evite fazer muitas concessões. Alguma concessão se faz, mesmo porque alguns de nossos paradigmas se mostram estúpidos. Vivemos num tempo muito veloz, e a literatura é uma árvore de frutos demorados. Não é fácil lidar com isso.

O que mais o agrada e o que lhe causa repulsa na literatura brasileira contemporânea?
Acho que vivemos um momento muito especial. Para começar, literatura virou pauta. Há dez anos não era. Acho que as pessoas estão escrevendo mais e melhor. Vejo isso nas oficinas que, por vezes, coordeno. Tem uma geração nova de autores que vai produzir grandes livros, alguns vão até escapar da armadilha de escrever roteiros em forma de ficção. Estão na casa dos 20 e 30. Acho também que os autores da minha idade, 41, tiveram sorte de serem livres. Guimarães Rosa morreu no ano em que nascemos, o muro de Berlim caiu em 1989, e o mercado não era tão soberano como é hoje. Não éramos tão expostos, e isso nos protegeu, ainda que pareça ter nos atrapalhado, quando recebemos as prestações de contas das editoras. Corporativismo, de qualquer tipo, me causa repulsa.

LEIA RESENHA DE PITANGA

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho