Do onírico mais que consciente

Carlos Eduardo de Magalhães dialoga com a tradição, sintoniza na realidade e na simultaneidade dos fatos e produz Pitanga, um romance pra lá de ousado
Carlos Eduardo de Magalhães, autor de “Das coisas definitivas”
01/09/2008

Estou na Paulista, caminho e há ambulantes nas imediações do Masp, água mineral, brinquedos feitos na China e churros do Jabaquara, passo após um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete passos e já ultrapassei pedestres, entro em um shopping, de onde saio sem gastar nenhum dinheiro e há uma hipótese que essa estação de metrô pode me levar, mas um pão na chapa com média, desses que somente há em Sampa, e prometo jamais cruzar a Ipiranga com a São João, nem falar de garoa, que existe mesmo apenas em Curitiba, de onde vim, onde moro e que está, provinciana que é, longe demais da imensa província que é essa cidade de tantos prédios, outdoors e carros que passam, e estaciono em frente a uma banca de revistas, jornais e manchetes.

A candidata do PT lidera a disputa pela prefeitura e o tucano pára de cair, o reajuste para servidores provoca despesas extras até 2012, o desmatamento na Amazônia cresce depois de três anos de queda, um composto de algas marinhas traz resultados promissores contra o HIV, o dólar lidera investimentos em agosto, há preconceitos no caminho de Obama, a Polícia Federal prende 17 por tráfico de drogas, o Diário Oficial publica súmula do STF decretando o fim do nepotismo, os professores do Paraná ganham o mesmo salário de 20 anos atrás e consumidores do design cans…

Há um sujeito bem-sucedido, financeiramente superavitário, que se tornou escritor e armazena no currículo noites e madrugadas com mulheres tidas como deslumbrantes em sua cama. As performances do casanova teriam sido recordes em caminhos para Shambalah e isso já faz tempo que acontece, fios brancos há muitos estão presentes em sua cabeça e é possível esquecer a passagem do tempo, cabernet sauvignon e roquefort, mirada no mar de Angra e muitas festas, que acontecem, nem se lembra em qual, sexo sem camisinha e filhos abortados talvez nem gravidez e não é possível saber das coisas e as versões que se impõem são parciais e toca celular, ou o fixo?, e chegaram mensagens demais nesta madrugada em sua caixa de entrada virtual, é preciso parar um pouco e pensar e pensar e pen…

Zeitgeist
Ler Pitanga, recente romance de Carlos Eduardo de Magalhães, é entrar em contato com uma experiência artística sintonizada com o espírito deste presente banda larga cordel, quase tudo ao mesmo tempo agora, cinema mais que transcendental, link para o que pode se passar com um imaginário humano. “Podia mesmo abrir uma exposição de fotos com gente famosa. Tinha fotos ao lado de atores de Hollywood, de atletas olímpicos, de jogadores de futebol, de gente da TV”. Aquele modelo de romance consagrado no século 19, sobretudo na França, consolidado na década de 1930, principalmente no Brasil, e que ainda persiste, de Paris a Rio de Janeiro-Porto Alegre-Curitiba, destoa completamente da proposta literária deste autor paulista.

São Paulo, então, é cenário recriado, reelaborado, nesta fabulação inventiva: “O coração de São Paulo é medo”. São Paulo, a mesma que já foi pano de fundo, por exemplo, de Brás, Bexiga e Barra Funda, de Antônio de Alcântara Machado, de contos de Mário de Andrade ou de Marçal Aquino e outros, é completamente outra via retina ficcional de Carlos Eduardo de Magalhães:

O coração de São Paulo é a Praça da Sé, marco zero, onde meninos sujos fumam crack. (…) O coração de São Paulo pulsa milhões de vezes por segundo, em vidas anestesiadas que vão daqui pra lá, de lá pra cá, sem saírem do lugar, do coração de São Paulo, que é o trabalho informal e a rua 25 de março.

Pitanga desmorona os trilhos em que um leitor pode vir a transitar. Quem é quem nesta narrativa? Há um escritor (escritor?) Giba Varcellos, há uma Patrícia, há outra Catherine Grant, há uma Gislaine, há uma Luiza Potti e há tanta gente, que se desencontra, às vezes se encontra, há sexo, casual, banal, convencional, há desejos a pulsar, pulsões muitas e inúmeras festas em uma mansão em Angra dos Reis onde hits made in Brasil dos anos 1980 tocam sem parar: “Olhar 43, Exagerado, Corações Psicodélicos, Alagados, Go Back“. Lembranças de alguém que na infância brincava com Falcons “uma espécie de Power Rangers do passado”, entre outras dilacerações e/ou banalidades que se deflagram por nada ou por tudo, a qualquer segundo ao acaso, ou som de uma música, via imagem ou pela condução da narrativa que surpreende até quem cochila. 

O verbo, o substantivo
Alguns capítulos iniciam com fragmentos de noticiário cotidiano e os desfechos dialogam com a idéia-força bíblica de que no início era o verbo, e variações disso. No meio, a rechear, a prosa mais do que inventiva, solta e leve do autor. “Nessa corrida de pensamentos, um elo puxava outro.” Entender, clara e objetivamente, o enredo não parece ser o objetivo desse subjetivo projeto em questão. O protagonista, mezzo herói, mezzo loser, não se modificará, necessariamente, ao final da jornada. Flashes, aleatórios, caóticos, repassam o que pode ter ocorrido com ele, e seguramente há distorção em tudo, como pratica a memória humana, a exemplo do que empreendem, entre outros, historiadores, conscientes, inconscientes, racionais ou não.

Há uma mulher-personagem que habita o imaginário de todos os homens, como se fosse a moça da propaganda de cerveja lata cor azul, com quem o protagonista tem algo, talvez não no futuro que virá, depois da última palavra, do derradeiro ponto. Luiza Potti. A obsessão. Tu tá com sorte porque já teve azar. No princípio era o substantivo. Não era amor nem ódio. Já ia longe o tempo em que comia empregadinhas. Durante algumas semanas revistas do mundo inteiro só falavam do playboy brasileiro Gilberto Varcellos. Este, um sujeito que sentia saudade de nunca ter lutado, efetivamente, em uma guerra.

E então parece que levar uma chamada vidinha, e não um vidão, pode entediar muita gente, e tudo pode e entedia tanta e muita gente, até mesmo o vazio depois de uma excelente trepada, mesmo se nem for excelente, nem trepada. “E os escritores contemporâneos?, parecia que acabaram de descobrir que tinham pinto e estavam loucos para fazer na literatura o que não fizeram na vida real.” De sublimação em sublimação, o passado não passa e se apresenta como a maior prisão do mundo, aquilo que dizem ser passado e, se no início era o verbo, no final também, deste imenso, gigante e inventivo livro chamado Pitanga: “E o instante preso se liberta”.

LEIA ENTREVISTA COM CARLOS EDUARDO DE MAGALHÃES.

Pitanga
Carlos Eduardo de Magalhães
Grua
223 págs.
Carlos Eduardo de Magalhães
Nasceu em São Paulo, em 1967. É autor de Zero – histórias e pernilongos, O sujeito ao lado, Mera fotografia, Os jacarés, O primeiro inimigo e Dora.
Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho