Um feliz sofredor

Entrevista com o escritor e ilustrador Nelson Cruz, autor de "No longe dos Gerais"
O escritor e ilustrador Nelson Cruz
01/03/2013

Dialogando com clássicos universais da literatura infanto-juvenil e, especialmente, com autores do Modernismo brasileiro, Nelson Cruz ilustra desde os anos 1970, quando estudou pintura no ateliê da artista plástica Esthergilda Menicucci. O primeiro livro como autor, no entanto, veio apenas em 1998, com Leonardo, narrativa visual sobre uma estátua na cidade grande. Nascido em 1957, em Belo Horizonte (MG), Cruz é casado com a também ilustradora Marilda Castanha. Juntos, os dois escreveram e ilustraram uma série de cinco livros publicados pela Cosac Naify, dentre eles Chica e João, que rendeu ao mineiro os prêmios de Melhor Livro Infantil da FNLIJ em 2000 e o Jabuti em 2001. No ano seguinte, foi indicado ao Prêmio Hans Christian Andersen de ilustração, o mais importante da literatura infantil mundial.

Recentemente, a obra de Nelson Cruz retratou uma faceta menos conhecida de Guimarães Rosa em No longe dos gerais (2004); recriou o conto dos três porquinhos em Os herdeiros do lobo (2009), vencedor do Jabuti de Melhor Livro Infantil de 2010; e dialogou com a poesia intimista de Carlos Drummond de Andrade em A máquina do poeta (2012). Nesta entrevista via e-mail, o escritor e ilustrador, que busca uma reflexão através da imagem, revela que Graciliano Ramos também está nos planos para um livro como fez com Guimarães e Drummond, e relembra o início “nada romântico” como leitor.

• Suas histórias estão em constante diálogo com clássicos universais como Alice no país das maravilhas e Os três porquinhos. Como foram seus primeiros passos de leitor?
Meu início como leitor não é nada parecido com o que leio hoje e também nada romântico. Minha casa de infância não era casa de leitores. Meus pais, pessoas humildes, não tinham condições de adquirir livros para os filhos. Os livros tinham que vir de uma escola pública muito ruim. E não vinham porque não havia biblioteca na escola. O primeiro livro que apareceu na minha casa era a biografia do Caryl Chessman, o bandido americano, que, condenado à pena de morte, aguardava execução no corredor da morte. Então, ele, Chessman, decide escrever sua vida enquanto estuda Direito para se defender da condenação. No livro ele relata todos seus assaltos, seqüestros, condenações, assassinatos, etc. Devo ter lido esse livro umas cinco vezes ou mais. Foi minha introdução à leitura. É claro que depois descobri Fernando Sabino, Vinicius de Moraes, Drummond, Borges. Os livros que li no passado e que leio hoje refletem nas idéias que tenho tido, com certeza, embora não me prendo a essa influência como fórmula para criar histórias. Mas, reconheço, os autores que li são a sustentação de várias histórias que escrevi. 

• Como aconteceu sua descoberta de Drummond? Para o senhor, a poesia dele fala também às crianças?
Provavelmente, descobri Drummond lendo sua poesia em jornais. Pessoalmente, não creio que a poesia de Drummond vai falar diretamente às crianças. Ele foi um poeta maduro escrevendo para os adultos. Mas, enquanto criador de imagens fortes como a pedra no caminho ou a imagem da flor e da náusea, Drummond deixa um rastro sinalizador para quem pretende introduzir sua poesia no mundo infantil. É ler e encontrar elementos ou formas que as crianças vão se identificar. É só ter um pouco de humor que se encontra o lugar das crianças nos poemas de Drummond.

• Ilustrar A máquina do poeta é quase que traduzir a poesia de Drummond em imagens. É mais fácil se comparado a uma eventual tradução textual?
Normalmente, ilustrar poesia já é um desafio. Às vezes penso que poesia não existe para ser ilustrada e não é a questão central de A máquina do poeta. As ilustrações desse livro formam uma combinação das imagens de poemas como No meio do caminho, A flor e a náusea, Convite ao suicídio e A máquina do mundo. Poemas que leio e releio interminavelmente na minha vida. Enquanto criador de imagens, visualizo esses poemas e imagino seqüências que não pude deixar de transferir para o papel. Procurei dar uma narrativa às imagens criando uma narrativa própria. Mas reconheço que vou ter que explicar isso bem ao público leitor mais distraído e desacostumado a uma ilustração autoral, como a desse livro. Há uma relação distante entre ilustração e texto. Mas eles se envolvem sutilmente dentro da liberdade de cada narrativa criando o objeto livro. 

No longe dos gerais pode ser considerado uma introdução ao universo de Guimarães Rosa. Como foi trabalhar com a linguagem rica e inventiva de Rosa?
No longe dos gerais não tem nenhuma intenção de investigar a linguagem ou estilo de narrativa de João Guimarães Rosa. Não sou lingüista nem pedagogo para estudos aprofundados da obra dele. Fiz esse livro como um leitor que descobriu na escrita de Rosa um grande criador de imagens. Na minha condição de ilustrador ia visualizando cada paisagem, cada personagem e as seqüências foram surgindo e permanecendo na minha memória. Aí o livro nasceu. Mas nasceu, principalmente, quando tomei conhecimento da participação do escritor na condução da boiada, em 1952. No longe trata da história da condução dessa boiada onde Guimarães acompanha e convive com os vaqueiros anotando todo o conhecimento que eles detêm. Constrói um verdadeiro laboratório para, quatro anos depois, lançar Grande sertão: veredas e Manuelzão e Miguilim [primeira parte do livro de novelas Corpo de baile, originalmente publicadas juntas e posteriormente, separadas]. A narrativa do meu livro é feita por um garoto que acompanhou a boiada, mas não foi citado na famosa reportagem da revista Cruzeiro. Na verdade, criei uma trilogia sobre “o que um autor é capaz de fazer para criar sua obra”. Fiquei fascinado com essa possibilidade de idéia e criei um projeto, do qual A máquina do poeta é o segundo livro. Como a Cosac Naify, que publicou No longe, não se interessou pela trilogia, o segundo livro saiu pela Edições SM, e trata da inspiração do poeta e dos elementos do espírito. O terceiro livro seria uma abordagem sobre Graciliano Ramos e a criação em período de prisão, tempos altamente politizados. Este, não sei se vai sair, vamos ver.

• Para ilustrar Os herdeiros do lobo você se utilizou de materiais como madeira, papéis artesanais e couro. Como você busca experimentar novos suportes nessa área?
Cada história vai agir no meu sensorial de forma diferenciada. Enquanto ilustrador, devo definir os personagens e cenários de modo que o leitor compreenda e visualize claramente as ilustrações. Isso é um dos lados da ilustração. Agora, enquanto artista, devo sim sentir o prazer pessoal e procurar aplicar a transcendência que as cores vão acrescentar a esse desenho e cenário. Confesso, é difícil decidir o que fazer naquele momento em que entendo o livro como um objeto de transgressão e que deve levar ao leitor uma chave para uma reflexão através da imagem. Mas é isso que procuro ser. Sofro para criar, mas sou feliz.

Guilherme Magalhães

É jornalista.

Rascunho